domingo, 2 de agosto de 2009

Nem lá, nem cá, talvez acima do muro.


Há muita gente que vive numa boa e se adapta bem em lugares ermos e inóspitos e até mesmo hostis, pelo mundo afora, em taperas e ocas mal equipadas, sem eletricidade, sem telefone, sem TV a cabo, sem DVD, sem computador, sem CD player, sem carro, sem metrô, sem cinema, sem livrarias e bibliotecas, sem teatros e sem delicatessens, sem supermercados, sem esgoto, sem água encanada, enfim, sem tudo aquilo que vem da obra e indústria deste monstro cruel, o "branco europeu dominante colonialista".

Mas há muito mais gente que não prescinde de nada disso. E não somos apenas nós, criaturas da classe média, que queremos e precisamos disto tudo, porque o povão também anseia por tudo isto -- e nada mais natural, o conforto e a comodidade que advêm da civilização são sinais da evolução do ser humano, em qualquer instância. E isto tudo é muito bom! Melhor ainda quando temos a educação e a instrução necessárias para compreendermos e para podermos fazer por onde merecer, ou seja, através do tra-ba-lho.

O que eu não consigo engolir, nem mesmo com farinha, é a de-ma-go-gia, ingênua no caso dos românticos, revanchista no caso dos invejosos e oportunista no caso dos poderosos.

Não estou aqui defendendo o "branco europeu dominante colonialista" pelo que ele fez de mesquinho e egoísta -- dominar, explorar, destruir --, mas defendo, sim, a preservação do que ele fez de bom, que aliás é tudo o que aprendemos -- a cultura, a ordenação das línguas, das ciências e tecnologias etc. -- e que possibilitou o surgimento da indústria que faz tudo o que vestimos e que consumimos (das roupas aos eletrodomésticos, das editoras de livros aos materiais e tecnologias de construção), enfim, coisas de que ninguém abre mão e que quem não tem, quer muito ter. Considerações econômicas à parte. Também não concordo com -- e não tolero o -- capitalismo, acho ele imoral e limitado-limitante espiritualmente. Mas não concordo tampouco com os rumos que as esquerdas tomaram no mundo.

Na verdade, desconfio muito seriamente de que o poder é algo extremamente tóxico e forte pro organismo da pessoa -- do corpo à psique e à alma -- e tem quase sempre consequências nefastas. Leva à soberba, à indiferença, à ambição desmedida, ao orgulho e a uma elaborada e mui providencial mudança de valores. E aos rabos presos, isso é fatal! Os poderosos são mais que imorais -- são amorais. Por isso não vejo diferença fundamental entre os ditos governos de direita e os ditos de esquerda, até agora. E benesses demagógicas eleitoreiras não me convencem, plis, silvuplê!

O mito do "povo coitadinho, sempre explorado e injustiçado, o que justifica a bandidagem e a malandragem", caiu pra mim. Se isso fosse verdade, não existiriam empregadas e porteiros e operários e garis e faxineiros e motoristas e carregadores e agricultores e costureiras e manicures e comerciários e auxiliares gerais e toda a extensa lista de empregados nos serviços básicos, dignos e nobres por serem necessários e indispensáveis pro bem estar geral da nação -- e tanto mais dignos e nobres serão, quanto melhor exercidos forem.
Há os explorados, sim, sempre houve, né? Mas há um imenso contingente de pessoas que simplesmente se recusam a fazer qualquer esforço e que, no entanto, exigem tudo que a vida tem de bom e de melhor, como se tivessem direito a isso. Dar esmolas sem exigir a contrapartida é a demagogia eleitoreira mais deslavada, que não traz benefício algum ao ser humano, ao contrário, torna-o indolente e inútil, um parasita. Pra mim, justiça só existe dentro do princípio: a cada um de acordo com a sua necessidade e o seu merecimento.

Não sou contra dar-se aulinhas de "artes" pro povão, desde que também se lhe dê ensino profissionalizante. Não sou contra o povão ter acesso à universidade, desde que seja por mérito próprio. E escancarar o ensino superior pra gente sem nenhum preparo, nem o estofo necessário, é como jogar sementes nas pedras, guardadas as proporções. Tampouco sou contra a preservação e a valorização da cultura popular, desde que não se achincalhe ou demonize a cultura do chamado "branco europeu dominante colonialista", ou seja, a nossa boa e velha cultura ocidental. Também não sou contra a reforma agrária, desde que feita com critérios justos e conscientes, o que não acontece na realidade. O Incra mesmo sabe que a grande maioria dos chamados "sem terra" não passa de malandros que vêm da periferia das grandes cidades -- o trabalhador rural de verdade continua lá no campo, trabalhando. Quem é que vocês acham que continua plantando e colhendo quase tudo que vocês comem e bebem?


Super-herói pra mim é a pessoa que foi à luta e saiu da miséria mais abjeta e alcançou uma posição privilegiada na vida (seja lá o que isso for), de modo honesto, útil, confiável e admirável. Pra esses, tiro todos os meus trocentos chapéus!
Exemplo? Millôr Fernandes -- aos 10 anos ficou órfão e só com seu irmão pouco mais velho por família, num subúrbio do Rio. Ambos foram à luta e cedo já eram independentes e não perdiam oportunidade de se informar e se instruir. Aos 40 e poucos anos, o Millôr já era um dos melhores, senão o melhor, tradutor de Shakespeare pra língua portuguesa, isso entre outros imensuráveis talentos.
Outro exemplo? Machado de Assis -- de favelado -- e mulato -- a ministro e maior escritor brasileiro até hoje, cem anos depois de sua morte.

* * *

Confesso que tenho, também, imensa simpatia pelos meus semelhantes mais semelhantes -- aqueles que se contentam com muito pouquinho -- um cantinho e um violão -- e seguem contentes com o que a vida lhes dá em troca, em termos de informação, instrução e de prazeres dos sentidos todos, e não pedem nada mais.

Como um casal de velhotes que conheci no interior do Goiás. Eram bastante roceiros, pareciam morar na periferia da cidadezinha há pouco tempo. Sua casinha de adobe, sem reboco, com cobertura de sapê, estava sempre impecável! Tudo limpo e arrumado em volta, formando um contraste gritante entre a casinha e a vizinhança -- a lambança favelal de praxe. Até eles mesmos, os velhotes, estavam sempre vestidos com a mais singela simplicidade roceira, mas com muita dignidade, limpeza, correção e elegância, nisso também contrastando com o comportamento e a aparência boçais reinantes à volta.
E pra completar o rol de qualidades dos velhotes fofos, de vez em quando eles reuniam uns compadres pra tocar sanfona, rabeca, viola e não sei que mais -- sempre durante o dia, pra não incomodar o descanso noturno dos vizinhos, nem dos convidados, nem dos anfitriões... -- e tocavam o legítimo sertanejo de raiz, não a porcariada breganeja que se esgoela dia e noite na mídia. Era música de altíssima qualidade -- a verdadeira cultura popular, em uma de suas mais representativas facetas.
Tá vendo? Esses já nasceram civilizados, prontinhos.

Então, era aí que eu queria chegar -- no meu modo de ver, no geral, não é a sua condição social, mas o seu caráter, que determina como você vai viver e interagir com o mundo.
Já me disseram que a fome nos faz cometer desatinos. Eu acredito. Mas desatinos são reações que fazem aflorar o verdadeiro caráter dos seres. Por isso há desatinos e desatinos, porque há seres e seres. E a cada dia que passa, estou mais convencida de que a maioria é do tipo joio, os trigos andam muito, muito, muito raros ultimamente...

Precisamos descobrir uma mágica urgente pra transformar lixo em pão, cabeças ocas em neurônios pensantes e icebergs em calorosos poetas e músicos.
Pensamento positivo basta? X^P


7 comentários:

  1. Oi, Iaci,

    Estou acompanhando o seu blog. Fiquei muito contente ao ver que você resolver publicar as admiráveis e divertidas fábulas.

    Beijo,

    Karina

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  2. quem sabe um dia rolam outras?
    beijos, leitora muitíssimo importante.

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  3. Viver sozinho é uma espécie de culto a si mesmo, uma arte ou narcisismo? beijos

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  4. não entendi o que a pergunta tem a ver com a crônica... de qualquer modo, acho que pode ser também uma contingência ou uma circunstância.

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  5. Minha querida na minha opinião não existe como transformar. Existe como coexistir. Infelizmente.
    Abraço, Anita

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  6. e, enquanto isso, vamos fazendo piada, ainda que ranzinza, pra aguentar o tranco ;^)

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