quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Passatempos para um trânsito congestionado



Não há melhor maneira de se começar o dia do que enfrentando um trânsito ultra congestionado!
Seu carro se arrasta leeeeeentamente por dois ou três metros e pára. Então você tem tooodo o tempo do mundo pra jogar uma partidinha de qualquer coisa no celular, limpar sua caixa de entrada e de saída no dito cujo, lixar as unhas, pregar os botões que caíram do seu casaco predileto, ler o Ulisses do James Joyce, de cabo a rabo, umas cinco vezes; ou ainda ficar apreciando os mais variados modelos de carros, caminhões, camionetes, vans, motocicletas, analisando suas características estéticas e técnicas, estilos, cores, acessórios; quiçá olhar pros pedestres, tão livres e soltos lá fora, e reprimir uma invejazinha deles ao imaginar que muito provavelmente eles saíram de ou estão indo para um ônibus mais lotado do que lata de sardinha.

De repente, pára um carro ao seu lado. Pra ser um trio elétrico, só falta o tamanho, porque o repertório e os decibéis das músicas (o termo é uma licença poética) são bastante apropriados. Claro, você desliga o seu som, onde rolava bem baixinho um blues ou jazz, e passa a curtir uma eguinha pocotó ou uma cachorra sei lá o quê ou qualquer coisa acerca de uma boquinha de garrafa. E ainda pensa como é bom poder variar e enriquecer seu repertório.

Por vezes, descobre novos passatempos pra se distrair no engarrafamento (será que a tal boquinha da garrafa tem a ver com isso?), como por exemplo, tentar adivinhar quantas vezes o sinal lááá na frente irá abrir e fechar antes que você consiga chegar lá. Recomendo fechar a janela ao praticar este joguinho, porque os trezentos e quarenta oito vendedores de balinha, água, pano de chão, pano de prato, bonecos infláveis, chiclete, chocolate, bem como os entregadores de folhetos os mais variados certamente irão lhe abordar sem trégua.
A menos que você prefira passar o looongo tempo de espera justamente lendo cuidadosa e atentamente todos e cada um destes folhetos. E ainda irá aprender algo a respeito de sua língua escrita, como por exemplo, a grafia do termo "tela mosquEteira", "entrega À domicílio", "conCerto de inGeSSão eletrOnica" e por aí vai.

Há também o excitante jogo de adivinhação que consiste em tentar prever qual dos carros vislumbrados nos seus retrovisores irá se espremer perigosamente entre os demais a fim de tirar um fino magistral da lataria do seu carro e tomar a sua dianteira, entre roncos furiosos de motor e guinchos agudos dos pneus nas freadas súbitas. Pura adrenalina! Melhor que bangee jump!

Por fim, ainda há a chance de rolar uma paquera, porque 99,99% dos carros à sua volta levam apenas o seu ou a sua motorista, cuja condição solitária, ainda que transitória (com trocadilho), facilita bastante o desenrolar da coisa.
Caso não obtenha sucesso nesta empreitada, pelo menos lhe restará o consolo de ler nos vidros traseiros dos muitos chevetes e corcéis e caravans que uma certa divindade lhe é fiel e que outra, ainda, lhe ama. Pelo menos alguém lhe ama e lhe é fiel, não é mesmo?

Está vendo só como é super divertido pegar congestionamento? Não entendo porque as pessoas reclamam tanto...

Fã de desenhos animados



Desde criança sou fã dos desenhos animados.
Dos comuns da TV -- quem da minha geração não se divertiu horrores com a Tartaruga Touché, Lip the Lion and Hardy Har-Har, Pepe Legal, Bob Pai e Bob Filho, Olho Vivo e Farofino, Mandachuva, Zé Colméia e Catatau, Wally Gator, Speed Racer, Homem de Ferro, O Poderoso Thor, Johnny Quest? --, até os mais que perfeitos desenhos animados do Walt Disney.
Nunca deixei de gostar do gênero, nem mesmo naquela época em que os universitários faziam de tudo pra parecerem muito maduros e politizados, evitando a todo custo qualquer hábito ou preferência que os associasse ao tolo universo infantil.

Este causo sucedeu-se num domingo, em pleno final de semestre, quando a gente se reunia na faculdade pra fazer os zil trabalhos e projetos, frequentemente virando noites e mais noites pra conseguir dar conta do recado.
Pois justamente naquele domingo -- e só naquele domingo, numa única seção -- estaria sendo exibido num cinema da cidade o meu filme predileto de animação do Walt Disney: Fantasia. Ainda não havia os videocassetes, de modo que esta seria uma oportunidade imperdível.

Planejei contar uma mentirinha inócua pros colegas quando chegasse a hora de ir pro cinema, que eu não era besta de dar bandeira de infantilismo no meio daquele bando de gozadores ou de sisudos ativistas do movimento estudantil.

-- Pessoal, desculpa, mas eu tenho que buscar minha tia no aeroporto.

Não só ninguém se deu conta de que isso seria impossível, posto que o meu veículo naquela época era uma bicicleta comum de dez marchas, como vieram as réplicas uma após a outra:

-- Ah, tudo bem. Eu também tenho que ir pra casa, dar banho no cachorro.

-- E eu tenho que ir no pronto-socorro, cof-cof, tô pra morrer aqui!

-- Hoje é aniversário do meu pai, tenho que ir também.

-- Eu vou no casamento do meu primo.

E sem perda de tempo, cada qual com sua desculpa esfarrapada, foram todos embora ligeiros.
E qual não foi minha surpresa quando, ao chegar no cinema, encontrei todos os colegas lá!

:)

O tempo passou, as técnicas evoluíram e eles nem se chamam mais "desenhos animados", são pura e simplesmente "animações". Há muito que já não me importo de declarar abertamente meu gosto por eles, os desenhos, ou por elas, as animações. E ontem fui assistir A Era do Gelo 3 em 3D, com uma amiga.

Chegando lá, foi com um sorriso cúmplice e admirado que percebi na plateia, entre as muitas crianças presentes, vários casais de namorados, gente de meia idade e alguns simpáticos velhotes, todos absolutamente desprovidos do álibi de ter levado o filho, o sobrinho ou os netinhos. Foram lá, sem pudor algum, do mesmo modo que eu e minha amiga, pra assistir a animação por vontade própria.
E as risadas mais altas e divertidas vinham justamente dos marmanjos e marmanjas que se esbaldaram com o filme!

Eu já havia observado o mesmo "fenômeno" ao assistir Ratatouille, A Noiva Fantasma, Schreck, bem como A Era do Gelo 1 e 2, entre outros.
Muito melhor do que prozac, vale por umas 15 seções de análise ou umas 6 cartelas de ansiolíticos.

Pobreza de espírito x livre pensar



Desconheço a interpretação dos estudiosos da Bíblia sobre o termo "pobre de espírito".
Mas eu tenho uma, pessoal, não-particular e perfeitamente transferível.

Pra mim, pobre de espírito é a pessoa que não busca o crescimento espiritual, simples assim.
E ainda sob o meu modesto ponto de vista, o crescimento espiritual se dá quando exercemos o livre pensar.

O livre pensador não se atém a uma só filosofia, religião ou doutrina que seja -- ele escolhe e acolhe aquilo que lhe fala ao espírito, não importa a origem.
O livre pensador não deixa os neurônios ociosos. Está sempre buscando respostas e acaba descobrindo novas perguntas. E nunca se dá por satisfeito -- quanto mais aprende, mais sente acentuada a própria ignorância sobre tudo o que o cerca. Por isso mesmo, julga menos do que observa e aprende mais do que ensina.
O livre pensador amplia seus horizontes, porque toma a devida distância dos fatos e, assim, enxerga mais longe. E, enxergando mais longe, insere o fato analisado num contexto mais amplo, obtendo mais e melhores parâmetros que lhe sugiram significados.
O livre pensador aceita as diferenças -- portanto, não aceita e nem impõe padrões inflexíveis; em outras palavras, o livre pensador não se julga dono da verdade, da virtude e da razão, porque sabe que estas não têm dono, são relativas e transitórias.
Por fim, o livre pensador sabe que o seu maior bem, seu maior patrimônio, não está contido na matéria, mas no espírito.

Abre parêntese. Entendo por espírito a nossa capacidade de sentir, discernir, compreender e apreender o que a razão ou os sentidos recolhem. Fecha parêntese.

Então, voltando ao início, penso que "pobreza de espírito" é o ódio pelo diferente, a inveja pelo afortunado, a indiferença pelo sofrimento alheio, a deslealdade, a injustiça, a desonestidade, a mentira, o rancor, a perversidade, a crueldade, o instinto destrutivo, a maledicência, a calúnia, a vingança, a mesquinharia, entre tantas outras qualidades negativas como estas.

Se o pobre de espírito soubesse que, mantendo-se nessa miséria existencial, sofre muito mais do que o seu suposto "inimigo" -- e, ao contrário, o livre pensador, ainda que se angustie no caminho do crescimento e sofra algumas dores inevitáveis, ao alcançar cada uma das muitas metas a que se propõe experimenta o incomparável e insubstituível êxtase prazeroso da descoberta --, então veria que está perdendo um tempo precioso e desperdiçando uma energia fundamental.

Lanço aqui a campanha -- libertemos o pensamento e enriqueçamos o espírito.

É tempo de jogar fora o lixo inútil.
E, então, vivamos e deixemos viver...

Trocando alho por bugalho



Tem gente que vive trocando as palavras, por pura distração. E muitas vezes nem se dá conta. Embora possa resultar em tragédia em alguns casos, em outros se torna pura comédia.

Era o caso da minha tia Dinda.

-- Moço, me vê um pote de Catupiru?

-- Quando for descer a escada, segura no rodapé.

-- Gama, hoje à noite eu vou na sua cama.

Não, seus maliciosos, a tia Dinda não era uma Mara Tara. Ela queria dizer "casa", mesmo.

Mas a campeã em trocar alho por bugalho foi a mãe de uma colega. Ao perceber um leve estrabismo na filha, levou a menina ao oftalmologista. E, conversadeira que só, ficou batendo papo animadamente com as pessoas que lotavam a sala de espera.
Até que alguém perguntou qual era o problema ocular da garota.
Ela, então, fez um gesto com os dois dedos indicadores voltados pra dentro, na altura dos olhos, e arrematou com a sentença:

-- Ela é lésbica.

Livros que li na infância:




Meu, pede laranja lima! - saga de um retirante paulistano da Mooca que, fugindo da vida adversa em Sampa, imigra pro sertão do Caicó em busca de melhor sorte.

Pole, Ana! - um relato emocionante da vida e obra da polidora de caras-de-pau, Ana, funcionária do senado.

Vi das secas - impressionante descrição de como o explorador destemido vislumbrou as raras e até então desconhecidas mãos de políticos que não foram molhadas. Ainda.

Sem hora - uma história muito triste, em que um vendedor de relógios descobre que roubaram todos os ponteiros.

Ir à Cema - descrição pormenorizada das aventuras e desventuras do herói, no percurso feito desde Baexo até Cema.

Amor e Ninha - romance épico que revela os caminhos e descaminhos de Ninha, moça inocente que buscava encontrar o amor, mas não o encontrava nunca.

Ô, corte isso! - romance realista, que faz um corte nu e cru na carne do próprio leitor ao relatar como eram feitas as cirurgias nos tempos de antanho.

Ô, ate n'eu! - pungente história sobre um terrorista suicida, que sempre que via alguém carregando algumas bananas de dinamite, logo implorava pra que atassem todas a ele.

Os Certões - eles não erravam uma, nunca!

Micos



Primeiro causo


O almoço ia animado e concorrido. Todos os amigos do casal recém-casado estavam presentes, lotando o apErtamento, e conversavam animadamente sobre zil assuntos ao mesmo tempo, como de costume. Lá pelas tantas, chegaram umas cinco ou seis pessoas que me eram levemente familiares -- o que me levou a deduzir que seriam daqui da cidade, já que ninguém fez as devidas apresentações -- e que ficaram sentadinhas, todas juntas, num cantinho da sala, conversando baixinho.
Foi então que alguém fez a pergunta fatídica:

-- Vocês foram assistir ao Maria, Maria?

Sim, eu fui.
Na primeira temporada, quando o Grupo Corpo passou por aqui, em turnê nacional, fui lá conferir e me encantei com tudo! Coreografia -- sempre me impressionou a capacidade dos bailarinos de fazerem com toda leveza, suavidade e elegância, os esforços físicos mais alucinados, possíveis e impossíveis --, bem como figurino, cenário, iluminação e, claro, a impecável música do Milton Nascimento e performance dos artistas.
Depois disso, o Grupo apresentou mais alguns espetáculos -- todos maravilhosos -- e, em seguida, partiu pra turnê internacional e levou o Maria, Maria pro mundo todo ver e aplaudir. Sucesso absoluto!
Na volta, uns 3 a 5 anos depois da primeira temporada, resolveram refazer uma turnê nacional com este mesmo espetáculo e novamente passaram por Brasília.
Isso aconteceu justamente por ocasião do almoço lá no apErtamento do casal amigo. E a linguaruda aqui resolveu responder à pergunta feita:

-- Eu fui, mas não gostei desta vez... Na primeira temporada, eu achei maravilhoso, tão original e emocionante, tão forte e ao mesmo tempo suave, bonito, e eles dançavam com evidente prazer e volúpia... Mas desta vez eu achei que eles já estavam enjoados desse trabalho, depois de tantos anos apresentando o dito cujo pelo mundo afora. Achei que eles dançaram burocraticamente, sem tesão, como quem vai cumprir expediente só pra bater o ponto.

Nem bem acabei de dizer isso, uma colega ao meu lado enfiou com decisão seu indignado cotovelo nas minhas desprotegidas costelinhas e sussurrou no meu ouvido:

-- Você sabe quem são aquelas pessoas ali no cantinho, que chegaram ainda há pouco?

-- Sei não... quem são eles?

-- Bailarinos do Grupo Corpo.


Fecha o pano. Rápido!


*


Segundo causo.


Também um almoço, desta feita numa linda casa em Búzios.
Minha amiga B., que andava pela cidade a passeio, estava presente neste almoço, levada por um colega. Não conhecia nenhuma outra pessoa, mas, longamente treinada pela vida de filha de diplomata, ficava perfeitamente à vontade entre estranhos. No entanto, neste dia em particular, talvez acometida por uma TPM galopante, ela não se sentia nada diplomática e, pra piorar, estava um tanto entediada com a conversa fiada dos ilustres desconhecidos e com a música de fundo.
Lá pelas tantas, alguém falou:

-- Vou botar um disco da N.C.. Alguma objeção?

-- Sim. -- disse a minha amiga, um tanto ácida -- Eu faço objeção. Não suporto essa cantora! A voz dela e o jeito de cantar são intragáveis! -- arrematou dando uma profunda tragada no cigarro.

O colega dela, que estava ao lado, então, perguntou bem baixinho:

-- Você sabe de quem é esta casa onde nós estamos?

-- Sei, de uma amiga sua.

-- Na verdade, esta casa é da mãe da minha amiga... E a mãe dela é a N.C..


Fecha esse pano logo, antes que alguém pague outro mico horrendo desses!

Ciúme



O ciúme nasce no pensamento.

A pessoa primeiro tem que pensar -- pô, tô sendo traída(o)!

Não. Não é assim tão simples. A raiz e causa primária desta triste constatação, que também vem do pensamento, é a estranha distorção que os fatos reais sofrem lá pelos intricados caminhos neuronais no cérebro da(o) ciumenta(o).

Pra ilustrar esta idéia, vou contar mais um causo.


Há uma expressão muito boa, que traduz com perfeição aquela situação em que a pessoa enxerga coisas que, na realidade, não estão ali -- "ver chifres na cabeça de cavalo".

Assim é com o ciúme mega-ultra-super-hiper-exacerbado.
Só que, no caso, muito tristemente, não se vê os chifres exatamente na cabeça do aliviado equino.

Para este tipo de ciumenta(o), toda e qualquer pessoa do sexo oposto que se aproxime do seu ser amado, ou que simplesmente se encontre dentro do seu campo de visão, torna-se imediatamente uma ameaça. Não potencial, mas real. Na sua fértil imaginação, naturalmente.

E este era o caso de Margarida.

Tava lá o Pitchuquinho saindo da facul de mãos dadas com a Margarida, quando chega uma colega deste, a Cássia Carolina Duncan Ro Ro, e começa a conversar:

-- E aê, rapá? Bora bater uma bolinha no sábado e depois vamo jogar uma sinuquinha de leve, hein? Tomar umas breja com linguicinha, hein? Linhais, cê tem umas chuteiras pra me emprestar, véi? As minhas eu emprestei pro Sandrão, aquela minha amiga que trabalha na estiva, tá ligado?... Pensando bem -- ela diz enquanto olha pros pés do rapaz -- acho que não vai dar... seus pés são muito pequenininhos!

Mas o que a Margarida ouvia era o seguinte:

-- Ai, meu gostosão irresistível, meu garanhão atlético, meu atleta de colchão, meu docinho de coco ralado... * suspiro * ... que tal um motelzinho no sábado depois do seu futebol e da sua sinuquinha, hein, meu gatinho manhoso?

Depois quem pagava o pato era o pobre do Pitchuquinho, que tinha que ouvir uma enxurrada de "gentis" palavras, sem ter feito nadinha que justificasse o fato.
E era sempre assim, fosse a velha tia de Botucatu tamanho GGGplus que veio pra visitar, fosse a priminha magérrima, de pernas tortas, dentucinha, com um ligeiro problema de acne e um discreto estrabismo, fosse a faxineira do supermercado, a médica do posto de saúde, a avó do melhor amigo, a própria irmã, a sobrinha de sete anos de idade, não tinha conversa. Margarida logo enxergava trocas de olhares e de e-mails, telefones, orkuts e facebooks; via línguas sendo passadas lenta e sensualmente pelos lábios, olhares de peixe morto, poses lascivas e sensuais, tudo dirigido inequivocamente ao seu Pitchuquinho... e mandava ver na bronca -- espinafrava tanto o coitadinho, quanto a involuntária e inocente "rival", que ficava com cara de será-que-ela-tá-me-confundindo-com-outra-pessoa?


Um dia o Pitchuquinho se cansou dessa história. Não é que tivesse deixado de amar a moça, mas simplesmente não conseguia mais se acostumar à coleira. Nem à bola de ferro presa aos pés. Nem às correntes e cadeados. Nem à burka. E muito menos às alucinações da Margarida, que decididamente estava a cada dia viajando mais e mais na maionese.
Então deixou a moça e se casou com a Literatura.
Dizem que hoje em dia o casal está muito bem, obrigada, e que já teve muitos filhinhos -- Conto, Crônica, Romance e Poesia. E ainda há um Ensaio na barriga.

E a Margarida?
Deve estar com o Tchutchucão, agora, e como de hábito, provavelmente ainda estará a enxergar enormes guampas na cabeça de uma certa imaginativa e ciumenta potrinha...

Na repartição



-- Dona Clotilde, cadê o relatório?!

-- Só se for agora, chefia! Num minutinho!

O "chefia" sai batendo a porta, esbaforido, chiando e soltando mais fumaça do que trem antigo. E a Dona Clotilde imediatamente volta à postura e expressão relaxadas de costume. Pachorrentamente, tira uma lixa de unhas da bolsa e começa a manicurar seus impecáveis apêndices digitais de quase 5 centímetros, os quais lhe servem de álibi perfeito pra justificar o ritmo de lesma paralítica com febre reumática com que digita seus raros e parcos relatórios. Abre parêntese. Quando se trata de mandar e responder e-mails pessoais, daqueles cheios de pps e de correntes e de alertas e dicas de saúde e receitas pra celíacos e fotos de crianças desaparecidas e aquelas piadas que, de tão batidas, praticamente já circulam pela rede por moto próprio, o ritmo e a quantidade sofrem um ligeiro incremento. Fecha parêntese.

A colega da mesa ao lado, com jeito conspiratório, pergunta baixinho:

-- Ô, Clotilde, você não vai fazer o relatório agora? Olha que o Chefia tá soltando lava incandescente pelos poros...

-- Ah, não esquenta, não!... Esse cara vai ter um piripaque qualquer hora, se não aprender a relaxar... Não sei pra que tanto estresse! No fim, vai tudo pro arquivo, mesmo.

Depois do trato às unhas, do quarto cafezinho com biscoito, do sexto copo de suco de maracujá, de oito saidinhas pra fofocar com as colegas lá do outro departamento e de tirar xerox de uma receita de bolo que saiu na revista que a moça da copa emprestou, finalmente Dona Clotilde se acomoda devidamente em sua cadeira, ressuscita o PC que tava tirando um cochilo, ajeita o teclado, o mouse pad, e assume a atitude alerta e concentrada de quem vai principiar uma tarefa importante.

-- Eita, Clotilde, resolveu finalmente desencavar o relatório, é? -- pergunta a conspiradora da mesa ao lado.

-- Que relatório?... Ah, aquele... Nada, menina! -- inclina-se mais pra perto da colega e cochicha -- Sabe a Dulcinéia, aquela que senta na mesa do cantinho lááá atrás? Eu pedi pra ela fazer e ela topou! Aliás, você já reparou como aquela criatura tra-ba-lha o dia inteirinho, sem parar? Eu fico até cansada só de olhar!... Credo, no mínimo, deve ser mal amada, coitadinha.

Com um suspiro profundo e cara compungida, volta a se concentrar na tela do PC. Faltava só um bocadinho pra terminar a partida de spider. E distraidamente ficou a pensar se, em seguida, jogaria solitaire ou freecell. Depois sorriu com o gozo antecipado da idéia da greve geral marcada pra semana seguinte -- pauta da reivindicação: aumento dos salários e benefícios --, uma oportunidade excelente pra ir passar uns dias em Caldas Novas ou Piri.

-- É isso que esgota uma pessoa, viu?... O tempo todo a gente tem que escolher e tomar decisões, sem ajuda de ninguém... Ufa, tô e-xaus-ta!... Já deu seis horas, meu bem?

Causo quase porno-erótico da arquiteta



-- Dotora, os home da betonera chegô, mas eles não truxe o vibradô.

Ao enunciar esta frase, o mestre de obras deixou entrever um brilho de prazer irônico no olhar e virou o rosto, olhando pro horizonte de valas abertas e estacas e fios e a parafernália de praxe.

-- E você não tem um vibrador lá no seu quarto de ferramentas?

Não foi fácil manter a postura e a compostura de quem não pretende passar recibo por aquele olharzinho sacana. Mas a voz saiu quase, quase natural, talvez apenas um pouco mais lenta e grave...

-- Tenho não, dotora... mais num será o causo de a sinhora ter um aí na sua bolsa, não?

Aposto que foi isso que ele pensou, o safado. Só se eu fosse a Mara Tara, pra ter um vibrador de concreto na minha bolsa. Além do mais, ele teria que ser retrátil, como os... de verdade. Ou então eu teria que carregar num tubo daqueles de guardar projeto. Ai, que viagem! Olha eu embarcando na minha própria alucinação! Pra quê que eu iria querer um negócio desses? Pra vibrar concreto. Mas eu não ponho a mão na massa. Nem o vibrador.

-- Vá perguntar na obra ali na esquina se eles podem emprestar um.

Boa!... Assim eu mato vários coelhos com uma caixa d'água só. Me mantenho na posição de autoridade máxima comandante em chefe desta joça de obra, mando ele sair da minha presença por alguns instantes e ainda resolvo o problema da falta de vibrador. De concreto.

Nos minutos que ele leva pra ir até lá e conversar fiado com o outro mestre de obras e só então voltar, recomponho minha dignidade à beira de um ataque de risos. Sabe como é, tem que manter o respeito, senão, ba-bau! Mas não tá fácil. Alguém, por favor, conta uma piada aí, depressa!

-- Eles emprestou.

Quantos homens simples e rudes estão presentes em torno das valas dos baldrames, prontas pra receber o recheio? Uns doze a quinze, eu diria, contando com o motorista da betoneira. Quantas mulheres? Uma, eu. Qual é minha função nesta obra? Acompanhar, supervisionar e ser responsável técnica. Tá, então, o quê que eu faço agora? Abotoa uma cara de tô nem aí, assista às primeiras vibradas e dê-se por satisfeita. Profissional e tecnicamente falando.

O concreto vai sendo derramado, meio viscoso, meio áspero, bruto. E o mestre de obras começa a função. Levanta aquele vibrador que poderia ser o brinquedinho de uma elefanta solitária e fogosa, num gesto muito másculo de caubói extemporâneo, liga a coisa no ar e só então vai baixando, lentamente, até a vala, agora cheia daquela massa pedregosa (daí a necessidade de se vibrar), e afunda a trapizonga com uma espécie de volúpia mal contida...
Seus olhos estão baixos, voltados pro serviço. Mas a expressão do rosto é de puro divertimento cínico. Ou de cinismo divertido, não sei bem.
Meus olhos estão baixos (minha visão periférica é muito boa), voltados pra vala. Minha expressão, provavelmente, é de alguém que está tentando disfarçar o fato de que tem uma abelha viva dentro da boca. A hilaridade da cena é coisa de filme! Comédia pura!
Ele capricha nas entradas e saídas, nos requebros de pulso, nos staccatti e nos vibratti; caminha com lascívia quando se dá por satisfeito num trecho e recomeça em outro, sem perder o timing nem a marotice nos gestos. E o tempo todo faz caras e bocas que poderiam ter sido do Chaplin. Ou do Mister Bean.

-- Bem... muito bom, excelente trabalho. Continue fazendo assim.

-- Não pára! Não pára! Não páááraaa...

Aposto que ele pensou isso, o cafajeste.
Vou caminhando em marcha tranquila até o meu carro, que está lááá longe. E ainda bem que está, porque, assim que entro e fecho a porta, posso soltar toda a gargalhada que tinha ficado entalada até então, daquelas de sair lágrima dos olhos e a gente ficar sem força...
Quando finalmente consigo arrancar com o carro, vou pensando.
Algumas profissões têm batismo de fogo, outras de água, quiçá haja as de terra ou de ar. Mas a profissão de arquiteta tocadora de obra tem batismo de vibrador. De concreto.
E a primeira vez a gente nunca esquece...