quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Causos da Antônia



CAUSOS DA ANTÔNIA

Antônia vinha subindo a ladeira de terra, cheia de buracos e de pedras soltas.
Lá do alto, vinha descendo um homem.

Quando já estavam bem próximos, ele meio que escorregou e
tropeçou e quase caiu.
Neste cai-não-cai o homem respirou fundo e
abriu a boca para falar alguma coisa, mas então olhou para Antônia e viu que ela assistia a tudo.
Daí, engoliu em seco, aprumou-se, ajeitou
a roupa e falou:

– Eu ia dizer xuranha, mas não vou falar!


E foi-se embora cheio de dignidade...

* * *

Quando vim morar em Pirenópolis, contratei uma faxineira que mora mesmo na minha rua. E logo de início percebi que teríamos algumas dificuldades na comunicação, pois ela é uma pessoa nascida e criada na roça e, além de tudo, é analfabeta. Seu linguajar é bastante peculiar – freqüentemente torna-se incompreensível para mim e é lógico que ela deixa de entender boa parte do que eu falo –; no entanto, nós duas nos divertimos com estas diferenças.

Por exemplo, um dia ela me perguntou:


– É pra lavar as vasia?


– Lavar o que, Antônia?

– As va-si-a – ela falou num tom que usaria para explicar a uma criança.


E vendo que eu continuava sem entender, apontou para a pia cheia de
louças sujas. Ah, eu pensei, as vasilhas!...
Então, com a cara mais cínica, respondi:


– É sim. Mas só as vasia que tiver vazia. As vasia cheia ocê num lava, não.


Ela riu. Ainda bem...

* * *

Ainda a boa e velha Antônia.

Num belo dia, ela olha para minha cama, suspira e diz com
uma voz sonhadora:

– Essa colcha deve de ser boa pra rebuçar...


– Boa pra que, Antônia?


– Pra rebuçar, uai!


Eu aqui já estava pensando bobagem, posto que a
sonoridade da palavra lembra mesmo uma bobagem, e ri meio maliciosa, meio sem graça, e então vi que ela me olhava sem entender minha reação.
Daí decidi perguntar o que é rebuçar, ao que ela respondeu:


– É ponhá por riba. Cobrirrr, igual ocês fala.


Ah, bom
* * *

Numa das primeiras faxinas que Antônia fez aqui em casa, eu falei para ela lavar algumas coisas com água sanitária.

– Lavar com o que?


– Com água sanitária. – e mostrei a ela o frasco da dita cuja.


– Ah, qui boa!...


Depois de um breve intervalo, ela começou a resmungar:

– Uai, os trem tem um nome tão facim, tão justim pra nós atinar e ocês tem mania de inventar uns nome custoso que nós num atina e nem dá conta de falar.

– É que água sanitária é o nome desse trem, não importa a marca, – e
expliquei a ela o que é marca, dando exemplos conhecidos por aqui, é claro – Q-Boa é só o nome da marca, igual tem outros nomes. Como Q-Boa é a mais conhecida, o povo se acostumou a chamar toda água sanitária com este nome, entendeu?

– Entendi. Mas por quê que eles num inventou o trem logo com o nome
mais facim, uai?

Ora, pois!...


* * *

Eu tenho um cachorro que é o próprio filho único – mimado e malcriado – e que tem mania de pular alegremente nas pessoas.
Só que
ele é um viralata negão e grandão, assusta quem não o conhece – e em alguns casos, até quem o conhece.

Antônia, naturalmente, tinha um certo medo dele, a
princípio. Mas como era ela quem cuidava da fera quando eu fazia minhas pequenas e breves viagens, teve que controlar este medo.
E o
modo que ela achou para se fazer respeitar foi falar com ele bem brava, bem agressiva mesmo.

Um dia, quando entrou no terreno – e ele, como de costume,
começou a pular feito um louco – ela não teve dúvida e falou rápido, com a voz rascante da braveza:

– Quietaí, fidaputa!


Eu, que estava por perto, fingindo uma dignidade ferida, falei:


– Antônia, como é que você chama meu filho de
fidaputa e bem na minha cara?!

Então ela, não menos cínica, argumentou:

– Uai, e eu lá tenho culpa d´ocê, além de ter um fíi cachorro, tem um
cachorro que é fidaputa?

Pois é. Contra uma lógica tão perfeita, quem é que pode argumentar?...

* * *

Antônia tinha um companheiro com o qual ela não mais queria viver.
Mandou-o ir embora várias vezes, mas ele voltava dizendo
que ia mudar, que gostava dela, e acabava ficando. E mudar que é bom, não mudava nunca!
Bebia todo o dinheiro das contas e da comida, dava
um prejuízo danado, daí que ela passou a chamá-lo de Enguiço.

Um dia o Enguiço adoeceu. Foi ficando magro, abatido, ruim mesmo.
O médico, por fim, decidiu interná-lo – estava com cirrose
hepática.
Não passou muito tempo e o Enguiço morreu. Depois disso
Antônia nunca mais se referiu a ele pelo apelido, mas sim pelo nome – Laurindo.

No meu entender, isso demonstra um profundo senso de
respeito. Ou então é a velha história de que não se deve falar mal dos mortos.

A morte devolveu ao Enguiço não apenas a honra, mas também o nome.



Maria Iaci Pirenópolis, junho de 2000

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