sexta-feira, 21 de agosto de 2009

Eu enquanto pessoa a nível de ser humano - um conto do vigário



A madrugada já ia alta, e a desalentada mestra, apesar de andar sonhando acordada que finalmente era hora de ir dormir, continuava sentada em frente à tela do computador. Faltavam ainda umas quinze monografias pra revisar.

"Eu enquanto pesoa a nivel de cerumano coloco que o diferensial da proposta agrega valor ao imajinario no subiconçiente coletivo da comunidade carente no contesto da orbi urbana da posmudernidade".


A esta altura, o desespero e a indignação já deram lugar a um torpor quase indiferente. Procura e encontra na sua caixa de entrada a resposta da aluna à sua mensagem enviada há uma semana:

"feçora si nen vc intendeu km eh q eu vo entede"

Boa pergunta. Ainda que sem ponto de interrogação.
De fato, nestes tempos de ctrl+c, ninguém mais sabe dizer o que quis dizer. Por isso ninguém mais SE forma... apenas forma... o quê, sabe Deus!

Há quem defenda que a língua vernácula é que deveria ser a nossa língua pátria oficial, em contraposição ao chamado "preconceito linguístico" dos que falam erudito. Por mim, tudo bem. Seria muito interessante ler uma tese sobre neurocirurgia escrita em vernaculês.

"U célebru é um trem múintchu importânti nus pissuá tudu. É eli qui guverna u rins, u istambu, u figu i as tripa tudu. U célebru tem uma carrada di neurônu quié u qui fais u cabôcu assuntá. É eli qui fais ocê sabê dôndi quié as isquerda i as diretcha, é eli qui fais ocê andá di bicicreta sem distrambeiá i distabocá nu xãu. Pa operá u célebru, ocê tem di pegá u cabôcu, dá umas nestezia preli drumi i num sinti dô. Adispois queli drumi, é ondi qui ocê pega i abri u quengu du cabôcu i iscarafunxa lá dentu pa vê ni dondi qui tá u tumô. Adispois di tirá u tumô fora, ocê ispera u cabocu cordá pa vê se deu certu, pruque eli podi cordá i ficá todu trapaiadu o bobu. Si eli num cordá, é pruque eli impacotô."

Pensando bem, acho isso preferível a:

"Em que pese a transubstanciação do aspecto unívoco na preponderante haplotomia heideggeriana intrinsecamente revinculada à resipiscência dicotômica do substrato filogênico, associada inapelavelmente à comburida virtualidade keiserlinguiana no seu modo mais semiótico e etereamente regougante..."

Eu deveria ter feito aquele concurso pra câmara... Hoje estaria ganhando muito bem, obrigada. Não há muita diferença entre aturar alunos desinteressados e semianalfas, colegas ególatras e pretensiosos, e aturar deputados e senadores corruptos, a não ser pelo salário.

O dia começa a clarear. Com os olhos vermelhos, ela se arrasta até a cozinha. Enquanto passa o café, fica imaginando um mundo melhor depois das reformas que se impõem com urgência. A faxineira chega.

-- Selycleide, quero falar uma coisa muito importante com você.

-- Ai, Dona Dotora, foi sem aquerê!... Tava c'as mão insabuada e as 12 chicrinha c'os pratim, mais o búli e a leiterinha, caiu e crebô...

-- Não, Selycleide, é outra coisa... É muito, muito importante que você não vote de novo no mesmo candidato em quem votou da última vez.

-- Cuma?

-- Se nenhum desses deputados e senadores safados for reeleito, há uma grande chance de se renovar a política no Brasil!

-- Tá bão... é justo... -- ela responde, apesar de não ter entendido muito bem -- Só tem um pobrema, Dotora Dona, eu não si alembro ni quem qui eu votei. Só mi alembro que tinha uma popraganda bunita na televisão. E que o patrão do Maicon Wesleyson, meu home, mandou ele mais os colega tudo votá num bacana lá, qui ele nem si alembra quem que é, e que se o bacana ganhava, eles ia levá de presente um radim aipódi... o bacana ganhô e o aipódi qui é bão, nem chêru!

Não tem jeito. É filme de terror. Se correr, o bicho pega, se ficar o bicho come. Sem nem ao menos fazer um carinho, dar um beijinho, telefonar no dia seguinte. Come a seco mesmo, na brutalidade.
É isso que os sucessivos desgovernos deste país fazem com a gente -- um estupro selvagem.
O povo mesmo é trabalhador, é um bravo e nunca desiste!

-- Dona Dotora, a sinhora me adiscurpa, mais é que eu mais o Maicon tá disistino de trabaiá...

-- Mas por que, Selycleide Abadia?!?

-- É que ocê paga p'a eu um salaro mimo, o patrão do Maicon tumém... e se eu mais o Maicon pára de trabaiá, nóis ganha siguro disimprego, bolsa famia, vale gás, tique transporte, tique alumentação, lote no Recanto das Ema e ainda defende algum pur fora indo batê palma nos comiço dos candidato.

Mundo cruel e injusto, este... Agora, além de ter que continuar a lidar com a manada de praxe de alunos semianalfas, indisciplinados e desinteressados, vou ter que limpar, passar, cozinhar...
Eu devia ter me casado com o Serjão... Ele passou pro Banco Central logo depois de entrar pra UnB e hoje mora no Lago Sul. Teria uma vida de princesa, só batendo perna no Parkshopping e comprando livros e CDs na Fnac.

Mas a vida real não espera e conclama. Hora de ir pro batente mais uma vez. Quer dizer, hora de pegar no batente em outro lugar, porque o batente de casa não dá mais tempo. Pega um ônibus lotado até a faculdade particular em Valparaiso. De lá, volta pro Plano Piloto e dá aula numa faculdade particular na Asa Sul e, mais tarde, em outra no Lago Norte. E no caminho sonha mais uma vez com aquela bolsa de estudos nos Estados Unidos.
Mesmo sabendo que é um sonho impossível, porque com aquela cara e sobrenome de árabe...


Maria Iaci
Publicado no Recanto das Letras em 21/08/2009

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

O pipoqueiro do Caseb



Entre as várias lendas e folclores que Brasília já tem, apesar de ainda nem ter completado 50 anos, tem uma que eu me sinto confortável em falar, porque fui testemunha ocular e auricular do fato. É a história do pipoqueiro que vendia maconha na porta do Caseb (alguns diziam da Caseb).

Sinto desapontar os afeitos às lendas, mas é fato, aconteceu de verdade. Eu estudava lá.

Um fim de tarde daqueles bem típicos em pleno período de seca, em que você se sente como se estivesse numa espécie de limbo, tava a molecada saindo da escola que nem morto-vivo, só querendo chegar logo em casa, quando rolou o bochicho -- sirenes, freadas, luzes piscantes e faiscantes, homens de farda, comandos altos e sonoros em ação... e lá se vai nosso pipoqueiro, preso em grande estilo!
Alegação: vendia maconha pras criancinhas inocentes.

Meu queixo caiu!
O meu e de mais uns 300 moleques, porque a gente nem desconfiava que o cara vendia algo além de pipoca.
Cabreira e descolada, fui perguntar prum chapa que eu sabia ser amigo de um baseadinho, se a denúncia procedia.
Procedia. Mas era na maior discrição... tanto é que nem eu, nem ninguém que não fosse do ramo (sem trocadilho), sabíamos disso.
E que eu saiba, ele jamais me vendeu -- ou pra qualquer conhecido meu -- pipoca de maconha, ou pipoca com maconha, ou baseado triturado em vez de sal na pipoca, ou maconha derretida no lugar da manteiga. Pelo menos as pipocas que comi tinham cheiro e sabor de pipoca. Com manteiga e sal. Substâncias perfeitamente legais, encontráveis em qualquer cozinha doméstica e domesticada. Porque naquele tempo não existia colesterol nem pressão alta.
Aliás, ele tampouco nos ofereceu as famosas -- e jamais vistas -- balinhas de maconha, com o fito torpe e pérfido de viciar os infantes incautos.
Eu tenho mesmo essa cara de viajandum, é de nascença. Não foi efeito da pipoca nem da balinha jamais vista ou chupada.

Não me lembro se este pipoqueiro voltou ou não. É pouco provável, tempos muito duros. Mas me lembro com certeza de que os outros fornecedores de coisas que não eram pipoca, que, naturalmente, nada -- frisa-se: nada -- tiveram a ver com a prisão do pobre do concorrente, sendo um deles fardado, embora do baixo clero, e o outro filho de Alguém, do Alto Clero, continuaram tocando os seus negócios com muita calma e tranquilidade...
Aí já não era mais segredo pra ninguém, embora não houvesse um que tivesse coragem de dizer isso mais alto do que um sussurro.
Perigava amanhecer sendo despejado do opalão branco no cerrado lá pras bandas da Barragem do Descoberto, pra lá da Ceilândia, e descobrir que tinha morrido. Tempos muito duros.

O tempo passou, o Caseb mudou, a gente cresceu... e uma noite no Beirute ouvi um grupo animado numa mesa próxima -- quiçá estivesse lá você, Wilson? -- discutindo acaloradamente se esse causo era lenda ou era verdade.
Não passou muito tempo, li sobre isso num artigo de um importante jornal do sudeste maravilha, dentre uma lista de outros mitos fatológicos de Brasília. Depois ouvi e li referências a este episódio em zil lugares diferentes. E ontem li num site estrangeiro! Provavelmente um recuerdo de algum filho de diplomata ou algo do gênero, que morou por aqui naquela época. Engraçado como essa historinha rendeu e caiu no gosto dos jornalistas, quando eles precisam tapar algum buraco na publicação (como se faltasse assunto)!

Em tempo, não assino embaixo desta crônica e não me comprometo, porque os eflúvios da marofa do tema podem ter afetado meu senso de percepção da realidade. E a minha noção de perigo.

Esta crônica se autodestruirá em 5 segundos.
Sem contagem regressiva.

terça-feira, 18 de agosto de 2009

Mais causo da Antônia



Antônia, um dia, veio me perguntar o que era esse tal de "el ninho".

Eu já havia apresentado a ela o globo terrestre -- eu tinha um pequeno e barato, mas que serviu perfeitamente aos seus e aos meus propósitos --, de modo que só precisei fazer um rápido recuerdo.

Mostrei a ela o Rio Amazonas, que ela conhecia da TV e, portanto, sabia que era um rio enooorme e largo como ela jamais vira na vida. Depois mostrei de novo o Oceano Pacífico e tracei sobre ele, com meu dedo, o caminho do "rio dentro do mar", que, numa certa época do ano, fica quente lá do outro lado do mundo e traz esse calor pra cá, assim. E que esse calor provoca mais chuva ali, mais seca acolá, conforme se vê na televisão.


Vi nos olhos dela que ela havia compreendido perfeitamente. Bem como o sorrizinho satisfeito que ficava estampado na cara alegre, toda vez que Antônia aprendia alguma coisa diferente.
Mas, de repente, seu rosto ficou sombrio.


-- Quê que foi, Antônia?

-- ... é que ocê ensina p'a eu um tanto de coisa... mas eu num dô conta de ensiná ocê...

-- Ensinar o que? -- logo ela que já tinha me ensinado muito sobre plantas e ervas daninhas e bichos e pragas e várias outras coisas fundamentais pra quem pretende "criar" uns canteiros, mas não sabe nada do assunto!

-- Cumé que eu sei quando vai inverrrná.

E, de fato, eu perguntei zilhões de vezes a ela, mas ela nunca me esclareceu como era possível, num dia cheio de sol e céu azul e calor, esta criatura olhar pra cima, pros morros, pras matas e, mais parecida com uma índia-pajé do que nunca, declinar com aquele sotaque cheio de erres muito líquidos e entonações arrastadas:

-- Vai inverrrná...

E dali a algumas horas se instaurava o inverno mais gelado no meio do verão!

Os olhos do Pablo


Estava conversando com uma jovem amiga, que está se iniciando no mundo da fotografia -- digital, naturalmente --, e me encantei com o entusiasmo e empenho com que ela está fazendo isso.

Foi inevitável me lembrar, com um largo e bobo sorriso dançando no rosto, da época em que uma das minhas casas -- além da materna e da universidade --, era a oficina-casa do meu amigo Paulo.
Lá aprendi muitas coisas: sobre cores, luzes, químicas, registros, imagens e até mesmo sons, ainda que coadjuvantes e de fundo.

Entre os muitos nichos sagrados desta saudosa oficina-casa, havia o laboratório de fotografia, onde se preparava as telas de serigrafia e, claro, se revelava e copiava fotografias, como se fazia muuuuito antigamente.
Eu acompanhava, com a circunspecção e reverência de uma noviça, todo o ritual preciso que havia em cada uma destas artes, sobretudo na fotografia.
E jamais, nunca, nem se eu perder o cérebro, vou me esquecer do dia em que, ao copiar as primeiras fotos do filho do meu amigo, a primeira coisa que surgiu no papel, sob a indefectível luz vermelha e nossos olhares encantados e molhados, foram os grandes e meigos olhos do Pablo, meu afilhado.

Que já ultrapassou pai e madrinha em altura e já é um rato de oficina feito o pai, há muitos anos, mas que não perde nunca aqueles olhos doces e meigos... quem vê, nem imagina o tanto que é turrão, igual ao pai, hehehe... talvez até por isso eu goste tanto daqueles dois!

Então pensei, que pena que a foto digital eliminou esses nichos sacrossantos e essas mágicas alquimias... em compensação, naquele tempo bem que todos nós suspirávamos por alguma folga genial como essa mamata digital toda, que só existia na ficção científica. E em Hollywood, claro.
E hoje agradecemos e brincamos bastante, com aquele mesmo sorriso bobo lá do começo.

Maria Iaci
Publicado no Recanto das Letras em 18/08/2009
Código do texto: T1760827

sábado, 15 de agosto de 2009

O que vc está fazendo em Brasília???


Um dia destes, conversando num chat, alguém me perguntou:

Alguém fala para Eu: mas o q é q uma moça bacana como vc tá fazendo em Brasília?!???

Eu fala para Alguém: ué, aqui em Brasília não tem só políticos e aquela indefectível coleção de vampiros que orbita em torno deles, não... aqui também tem gente, seres humanos de verdade que trabalham e vivem honestamente, como eu e vc... e nem somos nós que votamos nessas pragas que o resto do Brasil manda pra cá.

Alguém fala para Eu: mas vc é funcionária pública...

Eu fala para Alguém: mesmo que eu fosse, é um trabalho honesto como qualquer outro, quando vc faz concurso e passa... mas não sou func publ, não... sou especialista em dar murro em ponta de faca, nó em pingo d'água e em andar na corda bamba.

Alguém fala para Eu: ah, vc trabalha em circo?

Eu fala para Alguém: hehehe... sim, eu, vc, todo mundo trabalha e vive num grande circo... o problema é que às vezes os palhaços nos fazem mais chorar do que rir... e ainda assim, a gente vai levando... só não sei exatamente o quê, nem onde.

É proibido usar bermudas!



Um senhor distinto, bem apessoado, ia entrando no prédio da prefeitura da cidade de veraneio envergando sua melhor bermuda, quando foi barrado pela gentil funcionária:

-- Senhor, é proibido entrar no prédio vestindo bermuda.

Ao que ele prontamente respondeu, enquanto levava as mãos à braguilha:

-- Não seja por isso, eu tiro!

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Causos da Antônia



CAUSOS DA ANTÔNIA

Antônia vinha subindo a ladeira de terra, cheia de buracos e de pedras soltas.
Lá do alto, vinha descendo um homem.

Quando já estavam bem próximos, ele meio que escorregou e
tropeçou e quase caiu.
Neste cai-não-cai o homem respirou fundo e
abriu a boca para falar alguma coisa, mas então olhou para Antônia e viu que ela assistia a tudo.
Daí, engoliu em seco, aprumou-se, ajeitou
a roupa e falou:

– Eu ia dizer xuranha, mas não vou falar!


E foi-se embora cheio de dignidade...

* * *

Quando vim morar em Pirenópolis, contratei uma faxineira que mora mesmo na minha rua. E logo de início percebi que teríamos algumas dificuldades na comunicação, pois ela é uma pessoa nascida e criada na roça e, além de tudo, é analfabeta. Seu linguajar é bastante peculiar – freqüentemente torna-se incompreensível para mim e é lógico que ela deixa de entender boa parte do que eu falo –; no entanto, nós duas nos divertimos com estas diferenças.

Por exemplo, um dia ela me perguntou:


– É pra lavar as vasia?


– Lavar o que, Antônia?

– As va-si-a – ela falou num tom que usaria para explicar a uma criança.


E vendo que eu continuava sem entender, apontou para a pia cheia de
louças sujas. Ah, eu pensei, as vasilhas!...
Então, com a cara mais cínica, respondi:


– É sim. Mas só as vasia que tiver vazia. As vasia cheia ocê num lava, não.


Ela riu. Ainda bem...

* * *

Ainda a boa e velha Antônia.

Num belo dia, ela olha para minha cama, suspira e diz com
uma voz sonhadora:

– Essa colcha deve de ser boa pra rebuçar...


– Boa pra que, Antônia?


– Pra rebuçar, uai!


Eu aqui já estava pensando bobagem, posto que a
sonoridade da palavra lembra mesmo uma bobagem, e ri meio maliciosa, meio sem graça, e então vi que ela me olhava sem entender minha reação.
Daí decidi perguntar o que é rebuçar, ao que ela respondeu:


– É ponhá por riba. Cobrirrr, igual ocês fala.


Ah, bom
* * *

Numa das primeiras faxinas que Antônia fez aqui em casa, eu falei para ela lavar algumas coisas com água sanitária.

– Lavar com o que?


– Com água sanitária. – e mostrei a ela o frasco da dita cuja.


– Ah, qui boa!...


Depois de um breve intervalo, ela começou a resmungar:

– Uai, os trem tem um nome tão facim, tão justim pra nós atinar e ocês tem mania de inventar uns nome custoso que nós num atina e nem dá conta de falar.

– É que água sanitária é o nome desse trem, não importa a marca, – e
expliquei a ela o que é marca, dando exemplos conhecidos por aqui, é claro – Q-Boa é só o nome da marca, igual tem outros nomes. Como Q-Boa é a mais conhecida, o povo se acostumou a chamar toda água sanitária com este nome, entendeu?

– Entendi. Mas por quê que eles num inventou o trem logo com o nome
mais facim, uai?

Ora, pois!...


* * *

Eu tenho um cachorro que é o próprio filho único – mimado e malcriado – e que tem mania de pular alegremente nas pessoas.
Só que
ele é um viralata negão e grandão, assusta quem não o conhece – e em alguns casos, até quem o conhece.

Antônia, naturalmente, tinha um certo medo dele, a
princípio. Mas como era ela quem cuidava da fera quando eu fazia minhas pequenas e breves viagens, teve que controlar este medo.
E o
modo que ela achou para se fazer respeitar foi falar com ele bem brava, bem agressiva mesmo.

Um dia, quando entrou no terreno – e ele, como de costume,
começou a pular feito um louco – ela não teve dúvida e falou rápido, com a voz rascante da braveza:

– Quietaí, fidaputa!


Eu, que estava por perto, fingindo uma dignidade ferida, falei:


– Antônia, como é que você chama meu filho de
fidaputa e bem na minha cara?!

Então ela, não menos cínica, argumentou:

– Uai, e eu lá tenho culpa d´ocê, além de ter um fíi cachorro, tem um
cachorro que é fidaputa?

Pois é. Contra uma lógica tão perfeita, quem é que pode argumentar?...

* * *

Antônia tinha um companheiro com o qual ela não mais queria viver.
Mandou-o ir embora várias vezes, mas ele voltava dizendo
que ia mudar, que gostava dela, e acabava ficando. E mudar que é bom, não mudava nunca!
Bebia todo o dinheiro das contas e da comida, dava
um prejuízo danado, daí que ela passou a chamá-lo de Enguiço.

Um dia o Enguiço adoeceu. Foi ficando magro, abatido, ruim mesmo.
O médico, por fim, decidiu interná-lo – estava com cirrose
hepática.
Não passou muito tempo e o Enguiço morreu. Depois disso
Antônia nunca mais se referiu a ele pelo apelido, mas sim pelo nome – Laurindo.

No meu entender, isso demonstra um profundo senso de
respeito. Ou então é a velha história de que não se deve falar mal dos mortos.

A morte devolveu ao Enguiço não apenas a honra, mas também o nome.



Maria Iaci Pirenópolis, junho de 2000

O Flatomóvel


Ele era um mecânico habilidoso e criativo.

Mas também era um cara daqueles que comem ovo cozido, torresminho e croquete de boteco, pastel de carne, batata doce com melado, muito feijão com lingüiça, acarajé com pimenta, além de beber litros de refrigerante, de caldo de cana, de cerveja e de café.
O resultado desta dieta tão light era que ele sofria de flatulência, que é o nome chique para peidorreira desenfreada.


Num belo dia em que levou a namorada para passear num dos carrões que tinham sido deixados na oficina para consertar – ele consertava e dizia que, pra testar, tinha que passear com a namorada –, aconteceu d'ele olhar pro mostrador do combustível e ver que estava bem baixo e, ao mesmo tempo que constatava isso, soltou um sonoro e muito odoro traque, daqueles de estremecer o ambiente e derreter materiais sintéticos e, enquanto sua sufocada namorada abria o vidro entre indignada e desesperada, bateu a inspiração no mecânico – por que não fazer um carro movido a peido? – E, muito entusiasmado, fez esta mesma pergunta para a sua garota, que, entre grandes sorvos de ar poluído pelo trânsito (que a ela parecia o mais puro ar naquele instante) com a cabeça toda pra fora da janela do carro, prontamente respondeu:

– Bom, combustível pra você nunca vai faltar, não é mesmo?

* * *

Nosso flatulento amigo não demorou a por mãos à obra e fabricou um bom carrinho movido a gás biodigestivo, ou seja, a pum.

Mas, apesar de todo o entusiasmo com que se empenhou em fazê-lo, acabou constatando que não dava lá muito certo esse negócio.
Primeiro, porque o cheiro da descarga era insuportável! Mesmo depois da combustão, quando teoricamente o cheiro, digamos assim, de putrefação biodigestiva seria eliminado, por alguma razão que só a química conhece, o cheiro que saía lá no cano de descarga lembrava o suave aroma de um imenso ninho de ratos mortos, acrescido das meias usadas por todos os adolescentes depois da educação física e de todas as cuecas sujas esquecidas no fundo da gaveta – era o carro passar pela rua e ficava um rastro de pedestres sufocados, engasgados, alguns desmaiados, os viralatas saíam ganindo, as plantas nos jardins próximos à rua murchavam instantaneamente, os papelinhos jogados pela rua se incendiavam, enfim, eram tantas e tão incômodas as conseqüências da descarga do tal veículo, que este motivo por si só já inviabilizaria o projeto.

Mas o que acabou pegando mesmo, o que tornou o projeto definitivamente inviável, foi o modus operandi através do qual se processava o abastecimento.
Nosso peidorreiro inventor deu voltas e mais voltas no seu criativo cérebro para descobrir um modo prático de armazenar tão volátil combustível – engarrafar saía muito caro, porque um único punzinho era insuficiente pra encher uma garrafa de um litro, seriam necessários muitos punzinhos para preenchê-la, mas o gargalo da garrafa teria que ter uma válvula sofisticada para impedir que os peidos já armazenados escapassem no ato de engarrafar mais um e que não encrencasse na hora de abastecer o veículo, e tal válvula custaria tão caro que não valia a pena. Então o único modo que ele achou economicamente viável para fazer o abastecimento, era o que ele chamou de direto do produtor para o consumidor, ou seja, ele adaptou uma mangueirinha metálica flexível (resistente à corrosão do flato) que terminava lá na câmara de combustão e que começava bem no meio do assento do motorista, cuja ponta projetada para fora deveria ser encaixada com firmeza no orifício anal do motorista, ou seja, no fiofó do chofer, ou seja, no oribozinho do piloto. E isso, além de causar um incômodo extraordinário, abalava suas convicções machistas e preconceituosas.

Fora o que, para poder fabricar bastante combustível, passou a radicalizar mais ainda na dieta, tendo que parar no boteco mais próximo a cada cinco ou seis quilômetros rodados e se entupir de porcarias engorduradas, de modo que acabou ficando doente, com todas as taxas más bem altas e todas as taxas boas bem baixas, causando má circulação, má digestão, má disposição e, além da flatulência desenfreada, arrotos que saíam queimando como lança-chamas.
E ainda levou um pé na bunda – sua namorada o trocou por um balconista de perfumaria –, no que foi facilitado pelo modelito das calças que usava (como todo mecânico que se preze) que caía pela bunda abaixo, deixando trinta centímetros de rego aparecendo (o que também era muito conveniente na hora de abastecer o carro); e ainda por cima levou uma bruta multa do IBAMA por poluir o meio ambiente.


Hoje ele está melhor. Maneirou na dieta, melhorou de saúde, arranjou outra namorada e agora se dedica de corpo e alma ao seu mais novo projeto: o uso da meleca na calafetação dos veículos refrigerados.


Então, boa sorte, amigo!


Conto escrito por Maria Iaci, para o Bernardo, em fevereiro de 2004, Brasíla.

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Interpretação do Hino Nacional



Em tempos de pré-Copa do Mundo, o Hino Nacional vira hit -- todo mundo quer cantar, mas a maioria só enrola... mesmo porque a letra usa e abusa das inversões morfológicas, botando os predicados-carroças na frente dos bois-sujeitos, sem mencionar os adjetivos já fora de uso.
Aproveitando o ensejo, resolvi elaborar um pequeno exercício de interpretação do texto do nosso glorioso Hino, para ver quantos de vós, ilustrados leitores, estão em dia com o nosso lusitano idioma de trás-antônti...

Ouviram do Ipiranga às margens plácidas
De um povo heróico brado retumbante

a) Um caboco de nome Ipiranga, assentado na beira do córgo, ouviu um povo arretado bradar uns cum os outro.
b) Um cabra de nome Ipiranga ouviu as marge do ribeiro despencá -- plá! -- e os povo, assustado, garrou a bradar!
c) Um home de nome Ipiranga falou "as marge prácida", mas eu num sei o quê que isso qué dizer, não sinhô...

E o sol da liberdade em raios fúlgidos
Brilhou no céu da pátria nesse instante

a) Tava uma soleira arretada, mas deu um truvão de repente que chega a briá no mundo tudinho!
b) O sol tava quereno ser livre e solto e, entonse, quis fugir e, no que ia fugino, briou no céu tudinho!
c) Eu sei que o sol briou no céu nesse instantinho, mas o resto eu num sei, não sinhô...

Se o penhor desta igualdade
conseguimos conquistar com braço forte

a) Punharo a iguardade no prego e, adispois, rependido, foi lá tumá de volta na marra.
b) Os home butaro no prego uma iguardade que eles tinha tumado de alguém na porrada.
c) Tá falano aí de prego da caxa e de braço parrudo, o resto eu num sei, não sinhô...

Em teu seio, ó liberdade!
Desafia o nosso peito a própria morte

a) O caboco tá solto e atrivido nos peito da muié e nem num tem medo do marido dela, que pode chegá e querê tumá sastifação e inté dá uns pitoco nos peito dele!
b) O cabra tá dizeno que, pelos peito da quenga, ele inté desafia a morte!
c) Falô aí de peito e de morte e de liberdade; parece putaria; o resto eu num sei, não sinhô...

Ó Pátria amada, idolatrada, salve, salve!

a) Tá pidino pra sarvá a pátria que ele gosta dum tantão assim!
b) Tá pidino pra pátria, que ele ama à ufa, sarvá ele.
c) Tá pidino socorro pruma quenga de nome Pátria.

Brasil de um sonho intenso, um raio vívido
De amor e de esperança à terra desce

a) O caboco tava sonhano quando caiu um raio, entonse ele, pesar de cheio de amor e de esperança, baxô pra cova...
b) O cabra sonhô que um truvão desabestado caiu na terra e matô o amor e a esperança...
c) Eu atinei cum o Brasil, cum o rai, cum o amô e a isperança e cum a terra, mas o quê que isso tudo qué dizê eu num sei, não sinhô...

Em teu formoso céu risonho e límpido
A imagem do Cruzeiro resplandece

a) Tinha um cruzeiro grande, desses da sumana santa, erguido prum céu retado de fromoso.
b) Um cabra jogou pro alto um cruzero, que é o dinhero antigo, e ficô lá rino, esperano um trôxa ir lá pegá...
c) Tem lá um céu fromoso que ri (cumé que pode um trem desse, sô?) e um reau dos antigo, o resto eu num sei, não sinhô...

Gigante pela própria natureza
És belo, és forte, impávido colosso,

a) O caboco vivia solto nos mato, aí ficô tão grande e parrudo que virô gigante; o resto é boiolage e eu nem num quero sabê!
b) A minha religião num premite falá dissaí, não.
c) Íxe, óia a putaria aí de novo, sô! Que farta de poca-vergonha!

Se teu futuro espelha esta grandeza
Terra adorada, entre outras mil
És tu, Brasil, ó Pátria amada

a) Tá dizeno que a terra do Brasil é vaidosa, num pode vê um espêi que já vai lá se inzibí...
b) Tá esperano um espêio maió pra adispois, prumode vê o mundão de terra do Brasil...
c) Continua a putaria, sô!

Dos filhos deste solo és mãe gentil
Pátria amada Brasil

a) Os fíi da mãe dessa terra é tudo gentil!
b) Os fíi da mãe dessa terra é tudo boiola!
c) Vão pará c'a putaria aí, sô?!

Deitado eternamente em berço esplêndido
Ao som do mar, à luz do céu profundo

a) O caboco fica derreado na cama o dia e a noite tudinha, só ouvino o barúio do mar e nem num simporta c'a luz do sol na cara dele!...
b) O cabra priguiçoso fica só deitadim no berço do fíi dele, ouvino as onda do mar e oiano pro céu o dia tudinho!...
c) Bão, pelo meno parece que o caboco tá deitado suzinho, né? Intonse cabô a putaria...

Fulguras, ó Brasil, florão da América
Iluminado ao sol do novo mundo

a) Tá dizeno que o Brasil é o maió frozinha das América e que bria dum tanto que ilumina o céu do mundo novo tudinho!
b) Tá duvidano da masculinidade do Brasil, sô!
c) Pronto, evêm a putaria de novo!

Do que a terra mais garrida
Teus risonhos lindos campos têm mais flores

a) Tá dizeno que o Brasil é mais frozinha do que as terra mais boiola que tem no mundo!
b) Continua duvidano da masculinidade do Brasil, sô!
c) Se eu sabia que era tanta indecência, nem num começava essa merda!

Nossos bosques têm mais vida
Nossa vida no teu seio mais amores

a) Diz aí que nos nosso mato tem mais bicho, mais pranta verdinha, e que nóis leva a vida nos peito da muié...
b) Diz que nossas floresta é cheia de bicho e de pranta, por isso que nóis veve infurnado nos peito da muiezada...
c) Credo cruz, vadirreto, fiducão!

Ó Pátria amada, idolatrada, salve, salve!

a) Tá de novo pidino pra sarvá a pátria.
b) Tá pidino de novo pra pátria sarvá ele.
c) Tá pidino socorro de novo p'a quenga. E eu tumém...


Brasil, de amor eterno seja símbolo
O lábaro que ostentas estrelado,

a) Tá dizeno aí que o Brasil deve de se afeiçuá pra todo o sempre do símbalo dum trem que eu num tendi quê que é, não.
b) Ói... eu atinei com o Brasil, o amor eterno e o estrelado... o resto parece ingrêis da frância.
c) É... Brasil de amô num sei que lá... sei não, mas tá pareceno putaria ainda...

E diga o verde-louro desta flâmula
-- paz no futuro e glória no passado

a) É pr'um papagai dizê que amanhã é de paz e ônti foi de grória.
b) Um papagai só pode dizê paz no futuro e grória, no passado.
c) Cuma é que um verde pó sê loro??? O é loro, o é verde!

Mas, se ergues da justiça a clava forte,
Verás que um filho teu não foge à luta,
Nem teme, quem te adora, a própria morte.

a) Tá dizeno que os fíi dos caboco daqui num tem medo da dona justa, não, e num foge da raia na hora de distribuí uns cascudão e umas bifa no pé d'orêia.
b) Tá dizeno que, pesar dos ômi da lei sê tudo durão, os fíi da terra não só num foge, cuma num tem medo nem de morrê, que inté acha que é bão morrê!
c) O fíi de arguém aí num tem medo da puliça e nem da morte, nhalinhais, inté é afeiçuadim mais ela. Deve de sê desses degenerado que adora o coisa ruim.

Terra adorada, entre outras mil
És tu, Brasil, ó Pátria amada

a) O caboco tá dizeno pra Pátria, namorada dele, que gosta demais da conta da terra do Brasil!
b) O cabra deve de tá com bicha no bucho, pruque ele gosta de comê terra, mas só si fô terra do Brasil.
c) Continua a putaria, sô!

Dos filhos deste solo és mãe gentil
Pátria amada Brasil

a) Os fíi da mãe dessa terra é tudo gentil!
b) Os fíi da mãe dessa terra é tudo boiola!
c) Agora retei di vêis! Engole e digere o que disse, seu coisa ruim!


Etimologia Fake

Fiat Lux!

Caríssimos leitores, sendo perspicazes como sois, já devem ter reparado que na rede pululam fatos e informações da mais descarada improcedência e falsidade.
Cansada de lutar contra isto, dei-me por vencida e resolvi unir-me a eles, aos descarados falsificadores; então criei uma pequena e singela contribuição etimológica para a avalanche de falsidades que assola a web. Lá vai.

REMÉDIO
A origem do vocábulo "remédio" remonta à época dos antigos Essênios (2600 a.C.), os quais, desconhecendo completamente a química, a biologia, a farmacologia e a medicina, costumavam curar suas doenças e achaques através de mantras entoados pelos sacerdotes, mantras estes que só surtiam efeito se fossem entoados no exato tom entre o ré maior e o ré menor, ou seja, em ré médio.

MEDICINA
A origem do vocábulo "medicina" remonta à época dos antigos Sumérios (2800 a.C.), os quais, como seus futuros colegas Essênios, desconhecendo completamente a química, a biologia, a farmacologia e as medicinas alternativas, ao se depararem com seus pacientes enfermos nada mais podiam fazer a não ser escarafunchar aqui e ali, apalpar aqui e acolá, fazer uma sangriazinha básica utilizando nojentas sanguessugas ou adagas de osso rituais, para então declinar seu diagnóstico, que se restringia a uma mera datação da desgraça (ou da bonança) do sofrente, dizendo:
"Este aqui já está com o pé na cova."
"Aquele ali ainda vai aguentar umas 37 luas."
"Esta aí vai ficar boa, mas vai demorar um pouquinho e vai custar uns doze cabritos, cinco ovelhas, quatro búfalos e umas barrinhas de ouro."
Daí que eles apenas mediam a sina do sujeito -- daí o termo: "mede sina", que com o tempo tornou-se "medicina".

BASTARDO
As cidades primitivas costumavam ser cercadas por altas muralhas, em cujos cantos se erguia o bastião, que era uma espécie de forte guarnecido de bravos guerreiros que ficavam vigiando durante a noite e a madrugada, de modo a poder rechaçar os inimigos sem demora e com segurança.
Acontecia, porém, que as donzelas fogosas e incontidas do local às vezes fugiam de suas alcovas, alta madrugada, e iam alegres e fagueiras entregar-se aos bravos guerreiros, cheios de tédio, frio e sono trancados nos bastiões. Passados alguns meses, estas donzelas surgiam com rotundas barrigas e as pessoas, então, comentavam:
"Esta criança aí é filha do bastião tardo."
Com o tempo e a preguiça vernacular, o termo foi encurtado para "bastardo".
Esta é também a origem de um conhecido nome:
"Esse é bastião!" diziam as más línguas sobre aqueles cuja paternidade era controvertida.
"Cê é bastião, cabra safado!" diziam os maledicentes para seus desafetos.
Com o tempo e a vernacular preguiça, o termo encurtou-se e se tornou nome: "Sebastião".

MÚSICA
A origem do vocábulo "música" remonta à época dos Gregos Helênicos (6700 a.C.), os quais, ainda criando e balbuciando os primeiros vocábulos, costumavam comunicar-se através de sons onomatopéicos (como splash, atchim, cóf-cóf, pum etc), e sendo grandes admiradores dos sons melodiosos e harmoniosos, passeavam pelos campos a ouvir seus animais cantando -- a vaca fazendo "múúúuu", a abelha fazendo "zíííiiii" e o galo fazendo "cacaricó" --, então criaram o termo mu-zi-ka para designar todo e qualquer som melodioso e harmônico. Com o tempo e a vernacular preguiça, o vocábulo passou a ser grafado assim: "música".

RESPEITO
O vocábulo "respeito" remonta à época da ocupação moura na Península Ibérica (2500 a.C.), quando os bravos e bárbaros guerreiros, para angariar a admiração e a aprovação de seus pares, costumavam enfrentar um touro (res), igualmente bravo, de peito aberto, ou seja, destituídos de seus coletes de couro e de suas cotas de malha. Os companheiros daquele que obtinha sucesso em tal empreitada, então, diziam:
"Este é um bravo! Enfrenta a res de peito aberto!"
Com o tempo e com a vernacular preguiça, o termo foi-se encurtando:
"Este é um res-de-peito-aberto!"
"Este é um res-de-peito"
Sendo, porém, os lusitanos dados a uma reinterpretação das idéias, com o tempo passaram a dizer:
"Este é de-res-peito, ó pá!"
Até o termo se tornar simplesmente "respeito".

FORMIGA
O vocábulo "formiga" remonta à época dos primitivos Anglo-Saxões (4600 a.C.), os quais, sendo muito brincalhões, costumavam juntar uma razoável quantidade daqueles bichinhos, cuja picada ardia como fogo, acondicionando-os em belas embalagens para presente e os ofertando aos incautos amigos que, ao recebê-los, diziam:
"For me, guy?"
Com o tempo e com a vernacular tradução pro lusitano, o termo acabou virando "formiga".

COMUNISTA
O vocábulo remonta à época dos antigos Czares Russos (1700 a.C.), quando existiu um singelo camponês das estepes que, mesmo sendo muito pobre, costumava repartir na marra e na manha os bens e recursos daqueles mais abastados com os mais necessitados. Este camponês, de nome Istaparovsk, era mais conhecido por seu apelido, Ista; e quando alguém queria dizer que um sujeito era extremamente generoso e altruísta (sem trocadilhos e com o dinheiro alheio), dizia:
"Este é como um Ista!"
Com o tempo e com o frio de rachar que fazia por aquelas bandas, obrigando-os a falar entre dentes, a frase passou a ser pronunciada assim:
"Este é comunista!"

CARROÇA
O vocábulo "carroça" remonta à época dos primeiros fabricantes de carros de luxo de Detroit, USA (1936 a.C.), os quais, orgulhosos, arrogantes e fanfarrões, quando viam alguém conduzindo um humilde veículo de tração animal passar pelo seu brilhante e possante Cadillac rabo-de-peixe, costumavam rir e debochar dizendo:
"Lá vai o pobretão com seu carro da roça! Rá rá rá!..."
Com o tempo e com a vernacular preguiça dos capiaus, o termo encurtou-se e virou "carroça", sô.

RECORDE
O vocábulo "recorde" remonta à época dos primitivos Nordestinos da região do Agreste (1500 a.C.), os quais, durante os prolongados períodos de seca, quando não tinham o quê nem como plantar, nem mais animais para cuidar, nem nada mais para fazer e, extenuados pela sede e pela fome, costumavam andar de quatro, para lá e para cá, caçando mandacaru, para passar o tempo usavam propôr uns aos outros:
"Ramo rê (vamos ver) quem corre mais, de quatro?"
Com o tempo e com o vernacular cansaço que a brincadeira produzia, foram abreviando a fala para:
"Rê quem corre mais de?"
"Rê quem cór de?"
E assim surgiu o termo "recorde" que, na atualidade, passou a ser utilizado genericamente para designar qualquer feito portentoso que ultrapasse a marca anteriormente registrada.

Eureka!


Descobri o mal supremo que aflige a humanidade!
Depois de muito refletir, com cuidado, critério e método, cheguei à resposta definitiva.

Os muçulmanos brigam com os judeus e com os cristãos, e vice versa, porque cada um tem a firme crença de que é detentor da verdade final e absoluta. E se você for perguntar pra qualquer um deles como é que eles têm assim tanta certeza de que detêm a verdade final e absoluta, todos responderão que uma voz interna os adverte e instrui neste sentido, e que esta voz interna vem de Deus, ou de Alá, ou de Jeová, ou de seja lá qual for o nome que se dê pro Chefão Supremo do Além Mundo & Cia.

Os da dita Esquerda brigam de foice e martelo com os da dita Direita que, por sua vez, respondem com toda a força do seu imbatível e crescente e onipresente e superpoderoso poder econômico. E se você for perguntar pra qualquer um deles como é que eles têm assim essa certeza toda de que detêm a verdade final e absoluta, todos responderão que uma voz interna os adverte e instrui neste sentido, e que esta voz interna vem da Razão, ou de seja lá que nome se dê a esta entidade tão abstrata quanto os Deuses todos.

E mesmo os aparentemente neutros ficam olhando e observando toda essa brigalhada mortal e lá com seus botões e zíperes ficam a pensar -- que bando de maluco! -- e se você for perguntar pra eles por que pensam assim, todos irão responder que eles é que detêm a verdade final e absoluta, que vem de uma voz interna que os adverte e instrui neste sentido, e que essa voz interna vem de Buda, ou de Osho, ou de Praxanta Nashota, ou de Rumnagrahma, ou de Brahmanacâneka, ou de seja lá que nome se dê pro seu Guia e Guru Supremo Detentor de Toda a Verdade Final e Absoluta.

Ora, esclarecidos leitores, não é preciso ser psicólogo ou psiquiatra para se saber que este negócio de ouvir vozes internas é o sintoma primeiro da manifestação da esquizofrenia...
Daí que descobri que o problema primordial da Humanidade é exatamente este -- ela padece de esquizofrenia. Por isso ninguém se entende.
Simples, não?

Que fome zero o quê! Que emprego pra todos o caramba! Que educação ambiental nada! Que distribuição de renda o cacete! Que diplomacia que nada, rapaz!
O negócio é pôr todo mundo pra se tratar com os doutores da psique -- e já!

Quê que cê tá esperando? Corre já pro divã, rapaziada!

sábado, 8 de agosto de 2009

E durma-se com um barulho desses...


Não sei se vocês repararam, mas há uma crescente cultura do barulho se desenvolvendo e se alastrando à nossa volta. Ruídos assaltam nossos ouvidos indefesos a todo momento -- trânsito, maquinário pesado, crianças na escola, shoppings, restaurantes, bares, salas de espera, igrejas, vendedores de abacaxi, vendedores de políticos, vendedores de pamonha, carros de som, som de carros e -- aaaaarrrrrgh! -- vizinhos --, e a coisa se dá tão sistematicamente, que chega um momento em que você se dá conta de que não consegue mais nem mesmo ouvir seus próprios pensamentos... e que seus dentes estão trincados, sua testa está porejando suor frio, sua respiração está curta e rasa, e o seu humor está se aproximando perigosamente do nível praticamente psicopata - alerta vermelho.

Até mesmo nas salas de espera de hospitais e clínicas e prontos-socorros, onde se supõe que as pessoas estejam com algum tipo de mal-estar e desconforto e, portanto, precisando de repouso e silêncio, há sempre a onipresente TV se esgoelando por cima do ruído da conversa gritada, por causa da TV, e dos berros agudos das criancinhas criadas muito, muito, muito livres, leves e soltas demais.

E desde que a neo-esquerda decidiu demonizar, junto com o homem branco europeu dominante colonialista, a boa educação e a cultura erudita, comportamentos e costumes selvagens são vistos com benevolentes e social-justiceiros olhos -- que, míopes, pobrezinhos, confundem liberdade com esculhambação.

Tenho uma pequena teoria para explicar este apreço que as culturas primitivas e toscas -- como a nossa está se tornando cada vez mais -- têm pelas manifestações barulhentas. E pode reparar -- quanto mais tosca é uma cultura, mais barulhenta ela é também. E os indivíduos criados imersos nestas culturas toscas, sem desenvolverem os dotes da razão, deixam os neurônios ociosos. Logo, eles atrofiam, causando o efeito popularmente conhecido como cabeça oca ou pobreza de espírito. E fica aquele vazião tão grande e opressivo, que até faz eco com o menor dos pensamentinhos, quando algum assim bem básico, tipo vou comer ou dormir, escapa lá por dentro... Então as pessoas parecem sentir uma necessidade premente de ocupar esse vazio incômodo com decibéis e mais decibéis de ruídos -- e quanto mais, melhor!
O que, lesão no nervo auditivo? Que nada, isso é mentira de branco europeu dominante colonialista, que num gosta de vê nóis feliz e inventa moda pra mode nóis calá o barui.

Entendam, barulhentos compulsivos e compulsórios, que nós, minoria incompreendida, seres que prezam o silêncio -- de modo a que possamos ouvir, além dos nossos próprios pensamentos, o som do vento nas copas das árvores, dos passarinhos cantando, das ondas do mar, do murmúrio das fontes e dos riachos, da boa música colocada em volume baixo --, não pretendemos que o mundo seja sempre silencioso como um monastério, mas temos a convicção de que o ruído deve ser bem controlado e dosado, por uma questão de saúde e bom senso.
E pra extravasar vossos instintos berrantes, há os locais apropriados, como as casas de entretenimento com tratamento acústico adequado ou os estúdios profissionais, e os fones de ouvido nas demais circunstâncias. No mais, larguem de ser presunçosos por acharem que todas as pessoas do mundo têm o mesmo gosto musical que vocês e que ficarão encantadas em ouvir seu inesgotável repertório tocado em volume digno de um trio elétrico.


S.O.S. ... S.O.S. ... S.O.S. ...

P.S. - A coisa tá tão feia, que tem gente por aí dizendo que os que prezam o silêncio é que deveriam isolar acusticamente o seu lar-doce-lar, e não os barulhentos -- porque não se pode ferir o direito inalienável que eles têm de fazer o barulho que quiserem e você que se dane! --, o que remete àquela outra distorção de valores bem característica destes tempos de "correção política" -- os honestos estão ficando presos atrás de grades e trancas e alarmes enquanto os bandidos ficam livres, leves e soltos...
Os incomodados que se mudem o caramba! Os incomodantes que se eduquem e se civilizem, ora bolas!

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Genéricos



Hoje me invoquei com o nome dos genéricos, estes remedinhos que foram inventados pra diminuir o assalto das multinacionais da farmacologia aos nossos combalidos e pobres bolsos, mas que, com freqüência, nos são oferecidos por preços maiores do que os dos remédios com grife.

Ora, vejam só! Minha asma ficou ainda pior só de ler lá na receita que eu tenho que tomar um tal de fumarato de formoterol combinado com budesonida. Quase me indignei com meu médico e faltou pouco pra eu dizer pra ele mandar a mãe dele tomar também, ora bolas, que eu sou uma asmática de respeito!
Então resolvi escrever uma cartinha pra ele nos seguintes termos:

Caro Doutor,
Em vez de me encharcar e intoxicar com tanta doxiciclina e cloridrato de fexofenadina, causando-me azia com esta azitromicina diidratada, desidratando-me com o desidrocolato de sódio, embromando-me com a bromelaína, a bromexina e o bromidrato de fenoterol, metendo-me medo com a metóciopramida, fazendo-me benzer com a benzidamina e sabotando-me com o salbutamol, vê se paracetamol com tudo isso e vai tirar sua genitora da mometasona, onde ela certamente vibramicina entre os picratos de butesin e, dimeticona e pancreatina, abusa do fumarato de formoterol assim como da teriparatida injetável, enquanto rebola a budesonida pros omeprazol da vida...
Quanto a mim, já estou boazinha só com o chazinho de boldo da vovó e com a vitamina C do Cigarro, da Cerveja e da Cama.

Como diria o João Ubaldo, aqueles que se tratam com tantas dietas e privações, um dia certamente morrerão plenos de saúde!... além de portentores de um fabuloso vocabulário genérico, com o qual xingarão com muito gosto aos seus personal trainers, dieters e doutores, amém.

P.S. - deixei de fumar há quase 3 meses... esta croniqueta foi escrita em 2005.

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

um pouco de poesia...


Clique na imagem para vê-la ampliada.

terça-feira, 4 de agosto de 2009

Fábulas Fabulosas ou Classicozinhos Infantis Revisitados - Cap. VI



Era uma vez, num longínquo e próspero Reino edificado num lindo planalto central, um homenzinho muito pequeno, praticamente um anão -- pois que lá havia muitos deles --, cujo polegar da mão direita era ainda menor, mesmo em proporção ao tamanho do seu dono. E este seu peculiar dedinho tinha uma característica muito particular -- era capaz de contar rapidamente as moedas de ouro em seu bolso, de modo discreto e preciso, sem que o seu interlocutor ou qualquer outro possível observador percebesse. Tampouco pensariam que ele estava coçando certas partes da anatomia que não se deve coçar em público, nem mesmo com a mão no bolso...
E, do mesmo modo como facilmente contava as moedas em seus próprios bolsos, era com a máxima rapidez e discrição que as transferia para outros devidos ou que as pescava no interior destes últimos.

Pois o nosso homenzinho vivia pra cima e pra baixo do Grande Palácio Real, articulando alianças, lobbies, conchavos, tramóias, mutretas, conspirações, intrigas, desvios de verbas, falsidades ideológicas, calúnias, álibis, apropriações indébitas e demais ações próprias de gente muito baixa, sempre a soldo daqueles que lhe encomendassem qualquer uma delas.

Como a discrição era a sua marca e, além disso, sua pequena estatura o tornava invisível na multidão, ele sempre obtinha sucesso em seus intentos. E sendo muitíssimo bem relacionado com a alta nobreza, não tinha dificuldade alguma para ter acesso a quaisquer câmaras ou demais nobres, reais e majestáticos aposentos ultraprivativos dos grandes e poderosos duques e barões, de modo a levar seus negócios direto ao topo da pirâmide do poder e evitar o incômodo, incerto, demorado e dispendioso expediente de lidar com assessores e demais subalternos.

Por muitos e muitos anos, nosso pequeno, discreto, astuto e bem-relacionado lobista do polegar minúsculo viveu muito contente, pois nada o estorvava muito seriamente em suas negociatas e intrigas e, portanto, ele ficava a cada dia mais e mais escandalosa, fabulosa e secretamente rico.
Foi aí que a coisa começou a mudar...
Alguns dos duques e barões, preocupados com a crescente fortuna do homenzinho que, somada ao seu conhecimento de todas as tramóias já praticadas no Reino, lhe confeririam um poder extraordinário, tornando todos os grandes, nobres e majestáticos dirigentes do Reino seus reféns, reuniram-se secretissimamente a fim de discutir o que fazer a este respeito.

O Barão Antonius Carlus, ligado à Grande Liga dos Artesãos Construtores do Reino, como era bem de seu estilo, foi logo sugerindo que encomendassem com presteza sua partida desta vida, de uma vez por todas.
O Duque Amicus Regis, ligado à Grande Liga dos Coletores da Produção dos Vassalos, achou que essa atitude extrema atrairia a atenção de outros reinos sobre aquele... e que isso seria de todo indesejável, pois que iria arruinar muitos importantes e altamente rentáveis negócios que mantinham entre si.
O Visconde Paulus Malufus, ligado à Grande Liga dos Monopólios e Trusts Reais, sugeriu então que preparassem alguma armadilha, sob a forma de um novo negócio, de modo a que, tudo articulado prévia e secretamente entre eles, o homenzinho fosse levado a perder toda a sua já imensa e crescente fortuna e, portanto, assim também perdesse o poder assustador que estava adquirindo sobre eles.
Trama daqui, articula de lá, arremata-se dacolá, chegaram a um consenso e puseram seus planos em ação sem perda de tempo.

* * *

Passado um longo tempo, numa belíssima manhã de primavera, naquela hora em que os aldeões estão despertando para um novo dia de labuta e exaustão, vem pelas ruas o Anunciador Oficial do Reino, caminhando lentamente enquanto, numa voz límpida, clara e potente, recita as últimas notícias:

"Agência O Reinão - Termina o julgamento do processo do Povo contra o Pequeno Polegar, acusado de desviar verbas do erário para seus próprios bolsos, de articular intrigas para prejudicar concorrentes nos negócios, de burlar as leis na consecução de contratos, de tentar corromper autoridades, de se apropriar indebitamente de bens e rendas alheias, de formação de quadrilha, de prevaricar, mentir, omitir, locupletar, acobertar, obstruir, confundir, tergiversar, evadir, deturpar, sonegar, além de falsidade ideológica.
O juiz da Corte Máxima, responsável pelo julgamento em centésima e última instância, após anos de condenações e conseqüentes apelações, recursos e demais artifícios legais perpetrados pelos advogados de defesa, o condenou a dez dias num Spa-Hotel Fazenda de Segurança Máxima, ao cabo dos quais fica o cidadão obrigado a voltar às suas funções normais no serviço público, conforme previsto nas leis especiais que regulamentam sobre direitos e deveres dos colarinhos brancos.
Questionado por este anunciador sobre o que achava desta sentença e que planos teria para o futuro, Pequeno Polegar foi bastante enfático e sorridente ao responder, enquanto esfregava suas pequenas mãosinhas uma na outra, que estava contentíssimo por ter sido feita a justiça, ainda que de modo incompleto; que a pena, apesar de dura e implacável, era mais uma pedra que ele teria que superar em seu árduo caminho, que estas calúnias que culminaram em semelhante processo não iriam atingir sua honrada pessoa, pois que um dia iria conseguir comprovar sua total inocência, e que não via a hora de voltar aos negócios e ao convívio entre seus pares, os quais, ele estava certo disso, ficariam igualmente contentes e encantados por ter este seu velho e conhecido camarada de volta às suas funções normais."

E todos no Reino viveram felizes para sempre, ou seja, voltou tudo a ser como antes, com pequenas e insignificantes variações e ajustes só pra manter as aparências.

Moral da história: mais vale um polegar pequenininho do que um olhão gordão.

(entendam, todos os meus queridos baixinhos, que a "gente muito baixa" a que me referi aqui nada tem a ver com a altura do corpo -- vocês são pequenos na embalagem, mas imensos em seu precioso conteúdo!)

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Fábulas Fabulosas ou Classicozinhos Infantis Revisitados - cap. V


O Príncipe Beijoqueiro, aquele que beijou a Bela Adormecida pra ela acordar e depois se casou com a própria, acabou descobrindo que, depois de cem anos de sono profundo, ela adquiriu um bafo tão desagradável, mas tão desagradável que não tinha Listerine que resolvesse, então pediu o divórcio e se casou com a Princesa Beijoqueira, posto que obviamente esta sim, era feita pra ele!
A Princesa Beijoqueira, por sua vez, tinha se divorciado do Príncipe Sapo porque descobriu que, depois de muitos anos vivendo como batráquio no brejo, ele adquiriu péssimos hábitos, como chafurdar na lama e esticar a língua pra capturar e engolir toda mosca que voasse por perto.
O Príncipe Sapo, por sua vez, casou-se com a Princesa do Pombo (aquela que tirou um alfinete espetado na cabeça do pombo e este virou um belo príncipe) que, desencantada daquele marido chato que vivia reclamando de dor de cabeça quando ela o convidava a furunfar, achou que combinaria perfeitamente com o príncipe batráquio, já que era tão chegada num nobre proveniente do reino animal.
O Príncipe Pombo Espetado, por sua vez, casou-se com a Branca de Neve que, depois de se casar com o Príncipe Encantado, teve o desencanto de descobrir que ele preferia mil vezes a companhia dos sete anões à dela e, por isso, tinha se divorciado.
O Príncipe Encantado, então, casou-se com a Rapunzel que ficou encantadíssima com aquele marido tão talentoso para fazer penteados, massagens, rinsagens, luzes, chapinha, escova japonesa, progressiva e o escambau. E ainda havia a inestimável utilidade dos sete anões na hora de lavar as compridas madeixas. Tanto que nem se lembrava mais de seu ex-marido, o Príncipe Escalador.
O Príncipe Escalador, por sua vez, casou-se com a Bela Adormecida que, pelo menos, em vez de perder hoooras e hoooras cuidando da imensa cabeleira, e por já estar de saco cheio de tanto dormir, passava alegres horas fazendo tudo aquilo que a Rapunzel não tinha tempo nem disposição pra fazer.

E foram todos felizes até o próximo divórcio.

As aparências enganam, meeesmo!


Ele era um senhor já grisalho, de pouca estatura, magro como a maioria dos vegetarianos e dos iogues e, como esotérico que era, vivia com o pensamento nos dois mundos – o dos encarnados e o dos desencarnados.

Tinha o hábito de despir-se todo no quarto antes de ir para o banheiro tomar banho e, evidentemente, voltava de lá igualmente nu em pelo para então ir se vestir de novo no quarto.
Num belo dia, ao sair do banheiro lavado, enxugado, limpo e cheiroso e, como de costume, do jeito que veio ao mundo, com toda a sua magra e pequena encarnação exposta, deu de cara com um baita negão no meio do corredor do apartamento.

Qualquer outro teria reagido com nervosismo ou medo ou indignação, teria gritado ou corrido ou enfrentado o grandalhão com bravura na hora, mas não nosso esotérico amigo, o qual, depois de alguns segundos em que ambos ficaram se encarando estáticos e um tanto assustados, com toda a pachorra do mundo apoiou um cotovelo numa mão enquanto a outra apoiava de leve o queixo, na clássica pose do pensador, e deixou escapar num murmúrio especulativo para si mesmo:

– Será encarnado ou desencarnado?

O negão, duplamente surpreso – com a calma daquele velhinho pelado e com sua dúvida tão inusitada –, acabou por se mover indeciso, sem saber se voltava por onde veio ou se enfrentava tão frágil porém valente criatura, que a esta altura percebeu claramente que tratava-se de um encarnado, de um grande e forte e mal intencionado encarnado, e só então indignou-se, espigou-se todo e começou a falar com firmeza o discurso de praxe para a circunstância:

– O que o senhor está fazendo dentro do meu apartamento? O que o senhor quer aqui? Ponha-se já daqui para fora!

E, enquanto falava, ia andando decidido na direção do negão que, mais surpreso e embatucado do que nunca, foi recuando até a porta da sala.
Acontece que, na hora em que estava saindo assim meio escabreado, o vizinho ao lado, atraído pelo barulho, abriu sua porta para ver o que estava acontecendo. E o que ele viu foi um velhinho magrinho, pequenino, nu em pelo, expulsando com indignação um baita negão de seu apartamento. Nosso valente herói contou que, com sua segunda atenção, reparou que o vizinho ficou mais abismado do que assustado e que, a julgar pela expressão do seu rosto e olhar, pensou em várias possibilidades, inclusive a de que se tratava de um cliente insatisfeito expulsando um michê de sua casa e, desconcertado, rapidamente fechou sua porta.
O negão aproveitou o incidente para se escafeder pelas escadas e, depois disso, talvez tenha resolvido abandonar suas atividades de amigo do alheio para se dedicar a algum trabalho honesto. E o nosso herói voltou para o seu quarto para se vestir e provavelmente fazer uma prece em intenção à alma desgarrada do ladrão frustrado. E o vizinho deve estar até hoje pensando coisas escabrosas e inconfessáveis sobre o acontecido.

(este causo aconteceu com o pai de uma grande amiga minha, nos idos dos anos 70)

Fábulas Fabulosas ou Classicozinhos Infantis Revisitados - cap. IV



Era uma vez uma linda princesa que calçava 43 bico largo, cujo pai, o Rei, estava muito doente e, não tendo outros herdeiros, precisava casar sua filha com algum rico, nobre, real e majestático príncipe de um dos reinos da vizinhança, de modo a perpetuar a linhagem de sua nobre, real e majestática espécie, bem como o domínio do Reino que pertencia aos de seu puro sangue há incontáveis gerações.

Em seu leito de enfermo moribundo, o Rei conversava com sua filha, tentando convencê-la do dever irrecusável que ela teria que cumprir pelo bem de todos e felicidade geral do Reino. Enumerava todos os belos e guapos príncipes disponíveis nas redondezas, ressaltava as qualidades de cada um, mencionava o grau de nobre pureza real deste e daquel'outro, a bravura e a inteligência d'outros mais, a beleza e garbo daquele acolá, porém a princesa permanecia irredutível.

-- Não quero me casar, papai!
-- Mas por quê, filha minha?
-- Porque não quero e pronto!

O Rei, triste e macambúzio, afundou-se em suas nobres cobertas de seda. Com um tênue gesto cansado dispensou a filha e mandou chamar seu mais fiel conselheiro, o Duque de Fofockild, para juntos encontrarem uma solução adequada a tão delicado problema.

-- Fofockild, meu caro, minha linda filha recusa-se a se casar com qualquer dos nobres príncipes que escolhemos! Em verdade, recusa-se a se casar com quem quer que seja, pois diz que deseja ser celibatária, diz querer levar uma vida reclusa em orações, meditações e preces... Porém há que se continuar minha nobre, real e majestática linhagem, assim como há que permanecer esta no comando e domínio deste nobre, real e majestático Reino, que está com a família há incontáveis nobres, reais e majestáticos anos... Quê farei, oh, quê devo fazer?...

Fofockild, que há tempos andava cheio de vontade de contar ao Rei a nada nobre, nada real e nada majestática verdade sobre a princesinha, lambeu os beiços e abriu o bico:

-- M'lord, acontece que a princesinha tem preferências e hábitos não muito convencionais ou ortodoxos... posto que desde os treze anos de idade foge todas as noites para as tavernas da periferia, onde bebe canecas e mais canecas de garapa, toca num estranho alaúde músicas em ritmos e volume mais que plebeus, joga a queda-de-braço com os rudes camponeses que lá freqüentam e namora com as vulgares cortesãs que por ali pululam...

O Rei, ao ouvir tais relatos escandalosos, teve três achaques, cinco síncopes, oito apoplexias e morreu.

Fofockild, ciente de que perderia todas as mordomias caso o Reino ruísse, partiu então em busca de uma solução para o problema.
Procurou a princesa -- encontrou-a em seus aposentos particulares, jogando sinuca com o mais ralé dos cocheiros, em companhia das mais vulgares cortesãs -- e, sem demora, tratou de convencê-la da importância de satisfazerem a nobre, real e majestática vontade do falecido Rei, seu pai.

-- Vossa Sapateza Real, M'lady, compreenda que, assim que estejais destituída da nobreza, realeza e majestade de vossa linhagem, por força de sua descontinuidade, os que hoje dizem-se seus amigos, logo a abandonarão na rua da amargura e miséria e dor...
-- Ah, Fofockild, fufuck you!...
-- Escutai vosso mui fiel conselheiro, Vossa Sapateza Real, M'lady! Eu bem sei que não estais nem aí para estes nobres, reais e majestáticos assuntos, porém sei que gostais por demais de viver na balada, sem maiores preocupações que a escolha deste ou daquele folguedo para logo mais. Porém, para manter este padrão de vida, há que se pensar num modo de se manter o Reino sob vossa nobre, real e majestática linhagem...
-- Fofockild, cê tá surdo? Eu disse: fufuck you!
-- Ponderai junto a este mui humilde servo, Vossa Sapateza Real, M'lady! Pois que achei um modo de satisfazer a todos e ainda manter a integridade do Reino!

Neste momento, a princesa parou de jogar, dispensou o cocheiro e as cortesãs, acercou-se de Fofockild, aprumou-se com as mãos nos quadris e, olhando-o com enviesada desconfiança, perguntou-lhe:

-- E como seria isso?

* * *


Dez meses depois, o Reino estava salvo!
A princesa casou-se com o nobre, real e majestático Príncipe Boyolawsky III, assim unindo duas linhagens da mais nobre, real e majestática estirpe. Gerou um robusto, rosado e mimoso descendente -- evidente, porém secretamente, com o auxílio e ciência da bruxa-geneticista-mor, mui versada em inseminação artificial. Manteve o Reino em prosperidade e pujança sob os mui sábios conselhos do Duque de Fofockild. E descobriu que tinha muitas coisas em comum com seu nobre, real e majestático esposo, pois que ambos gostavam de virar as noites em tavernas, bebendo sucessivas e intermináveis canecas de garapa, tocando e cantando as selvagens músicas plebéias, além de demonstrarem uma grande inclinação a ficar com pessoas de seu mesmo sexo...

E assim todos viveram felizes para sempre...


* * *

Moral da história: mais vale um protocolo na mão do que dois reinos desmoronando...